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V de Vingança, ou as Possibilidades Além das Idéias



A humanidade é formada por animais inquietos. São seres que gritando aos céus suas dores, esperanças, ilusões, alegrias e decepções, imprimem seu legado no tempo. Assim, a memória do mundo impulsiona a busca por respostas e soluções nunca definitivamente encontradas. V de Vingança não é mais do que uma das tantas histórias contadas por seus herdeiros. 

No início do século XVII a Inglaterra estava mergulhada em disputas religiosas entre católicos e protestantes. O rei Jaime I irritava os católicos que decidiram levar a cabo um levante, aquele que ficou conhecido como a Conspiração da Pólvora e que deveria terminar com a destruição do prédio do Parlamento Inglês. Na noite de 5 de novembro de 1605, teria lugar uma sessão em que estaria presentes o rei, acompanhado de todos os parlamentares. Escondido sob o edifício estava Guy Fawkes, o escolhido para detonar as explosões. Porém, Fawkes foi descoberto. Preso e torturado, acabou por denunciar os outros conspiradores que com ele foram condenados à forca, por traição e assassinato. 

"Lembrai, lembrai o cinco de novembro. A pólvora, a traição e o ardil. Não sei de uma razão para a traição da pólvora ser algum dia esquecida."

Esta é a história que, já no século XX, serviu de inspiração para que Alan Moore escrevesse “V for Vendetta”, a história em quadrinhos que conta as desventuras do personagem V. Desenhada por David Loyd, a história de Moore foi publicada entre 1982 e 1983, em preto e branco, pela editora inglesa Warrior, não chegando a ser finalizada. Em 1988, incentivados pela DC Comics, Moore e Loyd retomaram a série e a concluíram em uma edição colorida. Anos mais tarde, Andy e Larry Wachowski (os irmãos que sacudiram o mundo cinematográfico com a trilogia Matrix), grandes fãs da HQ, decidiram levá-la às telas do cinema e apresentar o personagem mascarado V a um público maior. “Um humilde veterano do teatro de variedades, escalado como vítima e vilão pelas vicissitudes do destino. Esta máscara não é um mero vestígio de vaidade. É um vestígio da vox populi que não mais existe. No entanto, esta valente visita de um irritante ser ultrapassado visa varrer esses crimes venais e virulentos da vanguarda do vício que permitem a viciosa e voraz vacilação da vontade. O único veredicto é vingança, uma vendeta, mantida como voto, não em vão, por seu valor e veracidade que um dia vingará os zelosos e os virtuosos. Na verdade, depois dessa vívida verbosidade tão vociferante, só quero dizer que é uma honra conhecê-la. Pode me chamar de V".... de Vingança, pois ele assim escolheu.

V é um homem que não se lembra de suas origens, preso, torturado em um campo de concentração, tem seu corpo utilizado para experiências científicas ordenadas por quem procura meios para controlar as massas e garantir o poder. Ele foge e jura vingança. Em meio à execução de seus planos para derrubar os responsáveis por suas dores e de outros, V encontra Evey e seus destino seguem entrelaçados. Usando uma máscara com o rosto de Guy Fawkes e fazendo referências à antiga conspiração fracassada, V é considerado como terrorista. É uma ameaça para o Estado fascista, que domina a Inglaterra naquele tempo imaginário, e para homens que não hesitam em usar a repressão violenta e a grande mídia para, com notícias tendenciosa, mentirosas e fabricadas, manter o povo sob controle. É um universo totalitário e já previsto por George Orwell no seu livro “1984”.

Transformar “V for Vendetta” em uma obra cinematográfica não foi fácil. Exaustos após dez anos de dedicação à realização da trilogia Matrix, os irmãos Wachowski decidiram atualizar o roteiro que haviam feito com base na graphic novel cerca de 20 anos atrás, na década de 80, quando eram apenas dois admiradores de quadrinhos e entregar o trabalho de direção a James McTeigue, o homem que até então trabalhava com eles como assistente. 

Não satisfeito com o roteiro, Alan Moore, que não é um artista propenso a aceitar alterações em seus projetos, criticou duramente as adaptações feitas pelos Wachowski e por McTeigue. Eles se defenderam argumentando sobre a impossibilidade de transpor uma obra tão complexa para o formato cinematográfico. No entanto, conseguiram garantir a colaboração do desenhista David Loyd que defendeu a ideia de que a produção fosse uma obra diferente da HQ. O escolhido para interpretar V foi Hugo Weaving, também de "Matrix" (o Agente Smith), e para Evey Hammond a escolha foi Natalie Portman (Stars War). A expectativa era grande! 

Ma,s com o lançamento do filme, a reação predominante foi de um certo desconforto, muito mais pela história em si do que pela qualidade geral. Atores, diretores e equipe fizeram um trabalho correto, conseguiram desenvolver um cenário noir, onde a ação se passa em ritmo cadenciado e envolvente. Natalie Portman e Hugo Weaving merecem destaque pelas atuações seguras, assim como Stephen Rea que interpreta o detetive Finch. Os efeitos visuais são sutis, não inovadores, mas na medida certa para o clima geral da obra.

Na verdade, o argumento em si já não tinha nada de original quando lançado em quadrinhos, muito menos o tem no universo cinematográfico. Porém, esse é fato perdoável e até menor, pois outros elementos, quando bem utilizados podem gerar um espetáculo convincente e satisfatório. E isso acontece em “V de Vingança”, onde o que acaba pesando mesmo é V, suas motivações pessoais e o fascínio que o personagem exerce. Weaving aparece sempre mascarado ou no escuro, em momento algum seu rosto é mostrado, mas algo que não se pode questionar é a qualidade de seu desempenho. As falas de V são sempre intrigantes, o que já é meio caminho para tornar um personagem interessante, mas o ator também lhe empresta carisma e encanto no melhor estilo dos mocinhos galanteadores dos antigos filmes de capa e espada. Encantador e letal, pois V é educado e gentil, mas também é um assassino.

O desconforto vem diante da limitação pessoal de V. Para ele, “não existem certezas, apenas possibilidades”, mas, em meio à elas, V não encontra uma forma de ir além do desejo de vingança e se utiliza dos mesmo expedientes de seus adversários: a violência, o homicídio, a destruição. A tortura nas mãos de V se torna pior, pois pode ser usada contra pessoas amadas. Ele sabe que as idéias justas também aprisionam, causam perdas, sofrimentos, mas está por demais envolto em rancores e amarguras. Ele não transcende a dor e não vai além, rumo à nobreza de alma, mas mesmo assim ganha a simpatia do público que se sente constrangido por gostar dele.

Já Evey não deixa esquecer que um homem pode ser maior do que uma ideia e que a possibilidade mais preciosa é aquela que aponta para o que não compreendemos. “Testemunhei em primeira mão a força das idéias. Vi gente matar em nome delas e morrer defendendo-as. Mas você não pode beijar uma ideia. Não pode tocá-la ou abraçá-la. Idéias não sangram. Ideias não sentem dor. Elas não amam. E não é de uma ideia de que eu sinto falta. É de um homem. Um homem que me fez lembrar o 5 de novembros. Um homem que eu jamais esquecerei.” 

Em todas as épocas a humanidade grita suas dores e se desespera por soluções, procura por possibilidades que podem estar dentro de nós ou ao nosso lado, à espreita. Satisfação e felicidade não são opções e sim exigências, as necessidades são maiores do que as ideias e, diante delas, uma ideia pode ser uma armadilha. V tem a possibilidade de transcendência, de redenção e amor e evita agarrá-la por ser escravo de uma ideia. E é nesse ponto que a história parece fazer mais sentido. É uma alma confusa, mas que também é bela. E grandiosa é a odisseia da alma humana em seus caminhos e descaminhos, embora nunca deixe de ser ingênua sobre o mundo e sobre si mesma.

Impossível não identificar “V de Vingança” como uma analogia aos acontecimentos políticos do mundo atual, à política imperialista e neoliberal da era Bush, às tentativas constantes de subjulgar o Oriente Médio com desculpas que tentam esconder o real interesse pelas fontes petrolíferas da região, ao atentado de 11 de setembro e tantas outras ocorrências que inundam os noticiários internacionais diariamente. A história é sempre a mesma e com pequenas variações se repete ao longo dos séculos. Se guerras e revoluções fossem soluções, a humanidade viveria em paz. 

O que Larry e Andy Wachowski deixaram de mostrar é que uma verdadeira revolução com base em idéias não deve precisar de armas ou de violência. Se uma ideia não pode vencer seus adversários pela força de sua aplicação pacífica, não possui o poder de levar à evolução real e é um retrocesso, portanto é inútil e destinada à desilusão. Mas, como consolo, em seu momento decisivo, V percebe que quem faz as revoluções são os indivíduos que precisam estar de posse do uso total da própria consciência, razão e responsabilidade. Afinal, “nossa integridade vale tão pouco, mas é tudo o que temos. É o mais importante em nós. Mantendo nossa integridade, somos livres”.




Título Original: V for Vendetta
Gênero: Ficção Científica
Direção: James McTeigue
Roteiro: Andy Wachowski e Larry Wachowski
Tempo de Duração: 132 minutos
Produção: EUA / Alemanha, 2005 - Grant Hill, Joel Silver, Andy Wachowski e Larry Wachowski
Estúdio: Warner Bros. / Silver Pictures / Anarchos Productions Inc. / Virtual Studios
Distribuição: Warner Bros
Música: Dario Marianelli
Fotografia: Adrian Biddle (in Memoria)
Desenho de Produção: Owen Paterson
Direção de Arte: Marco Bittner Rosser, Stephan O. Gessler, Sarah Horton e Sebastian T. Krawinkel
Figurino: Sammy Sheldon
Edição: Martin Walsh
Efeitos Especiais: Baseblack / Cinesite Ltd. / Double Negative

Com Natalie Portman (Evey Hammond); Hugo Weaving (V); Stephen Rea (Finch); John Hurt (Sutler); Roger Allam (Prothero); Clive Ashborn (Guy Fawkes); Sinéad Cusack (Dra. Delia Surridge); Nicolas de Pruyssenaere (Marshal); Stephen Fry (Gordon Deitrich); Selina Giles (Mãe de Evey); Rupert Graves (Dominic); Ben Miles (Dascomb); Tim Pigott-Smith (Creedy); Cosima Shaw (Patricia); John Standing (Bispo Lilliman); Natasha Wightman (Valerie).