
Era meados de 2007. O lançamento de Zodíaco nos cinemas brasileiros me fazia rever um já antigo interesse, a psicopatia. O tema é bastante intrigante principalmente por jogar alguma luz sobre como os seres humanos percebem o mundo, reagem a ele, se tornam o que são e influenciam outros.
De modo geral, a psicopatia indica um “erro”, um desvio de rota no processo de desenvolvimento cerebral e da personalidade, que tanto tem causas biofísicas, quanto sociais e cognitivas. Ao contrário do que diz o agente do FBI, Will Grahan, para o canibal Hannibal Lecter (em Dragão Vermelho, de 2002), um psicopata não é um louco. “Sob o ponto de vista intelectual, os psicopatas são como as pessoas normais: não têm qualquer prejuízo de sua capacidade de discernimento”.
A psicopatia é uma das variantes do conjunto de anomalias que se convencionou chamar de “distúrbios da personalidade”. Um louco não articula pensamentos de forma lógica e com a sutileza racional possível aos psicopatas. Estes, por sua vez, não são deficientes mentais ou tampouco sofrem de alucinações ou problemas de identidade, como ocorre com vítimas de esquizofrenia, pelo contrário. Psicopatas frequentemente são indivíduos com inteligência acima da média, eloquentes, atraentes, carismáticos e sedutores que usam essas qualidades para mentir e enganar os outros.
Embora no plano intelectual o psicopata entenda perfeitamente a diferença entre o certo e o errado, ele não é dotado de emoções morais, pois não desenvolveu a capacidade cerebral de sintetizá-la. Portanto, ele não tem como sentir arrependimentos, culpa, piedade nem vergonha. Assim, ele é incapaz de nutrir qualquer empatia pelo próximo.
Enquanto nem todo psicopata torna-se um serial killer, todo serial killer desenvolve características que coincidem com as dos psicopatas. O cinema está repleto de personagens exemplares de um e de outro, que conquistam a atenção do público e, muitas vezes, até mesmo uma ponta disfarçada de admiração. A inteligência deles, embora usada de modos nocivos, demonstra um senso de objetivos e de planejamento muitas vezes superior à capacidade das pessoas comuns.
Zodíaco, dirigido por David Fincher (também realizador de Seven, os Sete Crimes Capitais, de 1995) refere-se ao caso real de um assassino que aterrorizou a cidade de São Francisco no ano de 1968. Além de destruir a vida de suas vítimas e de suas famílias, o criminoso alterou os destinos dos investigadores que trabalharam no caso. Ao enviar aos jornais cartas escritas em código, com ameaças e detalhes sobre suas vítimas, o serial killer Zodíaco despertou obsessões vãs que se prolongaram por décadas.
Reconhecidamente, psicopatas tendem a fazer jogos psicológicos altamente prejudiciais àqueles que os cercam. Eles usam a mentira e a persuasão para manipular as escolhas de outros e agem de tal modo que os erros que seriam deles são imputados a outras pessoas, que acabam acreditando realmente serem culpadas, relapsas, fracassadas, sem habilidades e ou potencial. É comum que um psicopata desequilibre todos a sua volta, a ponto de desenvolver nas pessoas medo, pânico e fobias de todo tipo. Ele nunca se trata, mas quem está à sua volta, invariavelmente, acaba deprimido e tendo de procurar ajuda médica e medicamentos que recuperem seu sistema nervoso.
O jogo que o assassino Zodíaco quis jogar, em fins dos anos 60, foi bem sutil, além de letal, e o levou a sair ileso e permanecer oculto até os dias atuais, tal como aconteceu com Jack, o estripador que aterrorizou Londres em 1888. As investigações do caso de Jack chegaram a apontar cerca de 200 suspeito sem que nunca se definisse o verdadeiro criminoso.
Outro filme que também tenta descrever as reações de um psicopata é A Cela (2000), com Jennifer Lopes. Nele, por meio de efeitos especiais e imagens com tons surrealistas, que lembram muito os quadros de Salvador Dali, se procura apresentar uma visão do que seria o inconsciente de um psicopata. E, como muitas vezes acontece em filmes do gênero, A Cela faz menção às violências sofridas pelo personagem Carl Stargher quando criança.
Pesquisas psiquiátricas de base neurológica indicam que em comparação com uma pessoa ‘normal’, o psicopata apresenta menor atividade cerebral em uma série de áreas envolvidas no julgamento moral (bem/mal). As causas dessas diferenças, porém, ainda são desconhecidas. Supõe-se que um componente genético esteja envolvido. Quanto aos componentes sociais que determinam o surgimento da psicopatia, os cientistas consideram que a ocorrência de abuso infantil, por exemplo, pode ter influência no distúrbio. Seja na forma de espancamento, seja na de estupro, o abuso é um fator de risco para a psicopatia, embora, por si só, não possa causá-la. De qualquer forma, sabe-se que grande parte dos psicopatas que se tornam serial killers se tornaram adultos que sofreram abusos quando criança, no período em que suas personalidades se encontravam em desenvolvimento.
Obras de estudiosos como Jean Piaget e L.S. Vygotsky ensinam que a personalidade humana se forma em contato com o meio social. A partir do nascimento, a criança passa a assimilar informações do ambiente em que se encontra inserida. A pequena mente, então inicia a captação e o processamento de sensações, desenvolve sentimentos e emoções, adere a usos, costumes, sintetiza valores. O vivente precisa sobreviver e encontrar um espaço seguro em um mundo estranho, ao encontrar violência e maus-tratos recua e distancia-se em autoproteção, acabando por gerar uma personalidade anti-social, caso haja tendências biológicas para tanto.
O cinema conta com uma galeria de personagens memoráveis, invariavelmente bem interpretados e capazes de manter o público em suspenso ao longo de cerca de duas horas, como Norman Bates (Anthony Perkins e depois Vince Vaughn no remaker de Psicose, em 1960 e 1998, respectivamente); John Ryder (Rutger Rauer em A Morte Pede Carona, de 1986); Hannibal Lecter (Anthony Hopkins em O Silêncio dos Inocentes, de 1991, Dragão Vermelho, de 2002 e Hannibal, de 2001); Francis Dolarhyde (Ralph Fiennes em Dragão Vermelho); John Doe (Ken Spacey em Seven); Carl Stargher (Vincent D'Onofrio em A Cela); Jack, o Estripador (Johnny Depp em Do Inferno, de 2001); Hayley Stack (Ellen Page em Menina Má.Com, de 2006), entre muitos outros que surgiram ao longo da história da sétima arte. São filmes onde o suspense e tensão envolvem totalmente quem os assiste. O efeito final também é sempre o mesmo, o sentimento de atordoamento, de confusão, de fatalidade, de impotência, a repulsa, a admiração e até a pena e simpatia pelo psicopata.
De todos, Psicose de Alfred Hitchcock é um clássico e Seven de David Fincher me parece a mais perfeita tradução do gênero, com um clima opressivo de tensão constante e um final estarrecedor. Neste último, David Mills (Brad Pitt) enfrenta a mente gelada do serial killer John Doe, perde tudo e se torna um farrapo humano.
Em Dragão Vermelho Will Grahan (Edward Norton) quase perde a vida nas mãos de Hannibal Lecter e coloca a própria família à mercê de Francis Dolarhyde. Lutando contra seu dragão interior, Dolarhyd se rebela contra as próprias propensões ao ser sensibilizado por Reba McClane (Emily Watson), que em sua fragilidade, devido à cegueira, abre uma janela de comunicação com ele, iluminando uma fresta de sensibilidade que a salva. Mas ele sabe que não conseguirá ter controle permanente sobre seus atos e a afasta de si para protegê-la.
E como não sentir pena de Carl Stargher, o psicopata de A Cela, ou mesmo de Dolarhyde? Ambos tentam ser mais fortes do que as próprias tendências destrutivas, mas não conseguem. Stargher em sua briga inconsciente, tenta resistir a seus fantasmas interiores, mas sucumbe a um inconsciente que o devora.
A psicopatia não pode ser “curada” e, de certa forma, é responsabilidade de toda a humanidade, pois o ambiente social é construção histórica e coletiva. Por isso Hannibal Lecter é condenado a cinco prisões perpétuas, mas não à execução. Mantê-lo vivo, além de oportunidade de estudo, também é uma expiação por uma “culpa” que é ancestral, afinal o psicopata é resultado de uma herança genética e cultural que se desenvolve no interior da civilização.
O mal é sutil e pode se fazer presente de muitas formas. Filósofos que estudaram a mente de oficiais nazistas após a Segunda Guerra Mundial concluíram que o mal é nada mais nada menos do que a ausência do bem em consequência da banalização do que é destrutivo, nocivo, ou a incapacidade de sentir empatia pelo sofrimento alheio. Por aí, a psicopatia é a concretização de tudo o que pode existir de mais negativo na mente e na cultura, e que não se contenta em perseverar apenas em si mesmo.
(Editado em 19 de novembro de 2024)