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Às Margens da Filosofia

A Prof. Marília, Mariza Fossa e eu. Preparação para dar início à mesa.

Ao longo de toda a minha vida estive envolvida por uma curiosidade essencial: queria compreender o mundo. Das partículas subatômicas às estruturas de controle social, tudo sempre me interessou. Preciso entender porque as coisas são como são, funcionam como funcionam. E enquanto não entendo algo que me chama a atenção em especial, não sossego. Ainda recentemente a Prof Marília Pisani comentou ter a impressão de que eu quero envolver o mundo com os braços. E ela tem razão! Me espanta, portanto, que nunca antes eu tenha me voltado para a minha própria condição. Eu, mulher no mundo... O que é ser mulher no mundo? 

Foi por acaso, pesquisando Rosa Luxemburgo e em meio à relação pessoal mais estranha, complicada e problemática que já vivi com alguém, que tropecei em Alexandra Kolontai. Lendo seu "A Nova Mulher e a Moral Sexual" comecei a ter uma ideia do que está implícito em ser mulher no mundo. Nada me soou mais providencial, portanto, do que a ideia da Prof. Marília para o Às Margens da Filosofia deste ano. Sua proposta era focar as mulheres, pensamentos, conflitos, problemas, essência... E, ao contrário de anos anteriores, desta feita se contaria com a participação dos graduandos como palestrantes. Me propus, claro, a falar sobre a Alexandra em "A Crítica dos Afetos em Alexandra Kolontai" e sobre Rosa Luxemburgo em "Mulher e Revolucionária". 

Infelizmente, devido a compromissos, não me foi possível estar presente em todas as palestras. Mas me esforcei por prestigiar as apresentações dos colegas estudantes. Afinal incentivo é fundamental para quem está dando seus primeiros passos. Eu bem sei! Assisti a Mariza Fossa, que apresentou "Madame de Chatelêt: contradição entre vida e obra". A contradição diz respeito à dedicação aos estudos científicos e à uma vida afetiva marcada por paixões avassaladoras. Tem-se a ideia de que a seriedade de uma intelectual não combina com uma vida amorosa movimentada. Mariza demonstrou que uma coisa, necessariamente, não anula outra, muito pelo contrário.

Roberta Fiusa desenvolveu e apresentou o tema "A escrita Íntima de Anais Nin". Eu, que aguardei ansiosamente para ouvir esta apresentação desde que foi anunciada, saí dela bastante satisfeita. Ouvi falar sobre uma subjetividade marcada por conflitos íntimos originados pela relação (ou ausência dela) com um pai ausente. Falta esta que possivelmente influenciou no desenvolvimento da personalidade de uma mulher independente e disposta a viver sua intimidade. Eu, que também tenho lá meus problemas com um pai ausente, me senti interessada pela forma como a Anais lidou com suas carências.

Miguel Vicentin se propôs a falar sobre a minha escritora preferida, a Clarice Lispector. Comentou sobre sua história de vida e traçou um paralelo entre os escritos de Clarice e textos de Filosofia, principalmente de Rousseau e de Espinosa. Eu já havia notado certas analogias com Espinosa, mas Rousseau foi novidade. Bastante informativa a fala do Miguel, que com seu entusiasmo demostrou ser um apaixonado pelo tema. Me interessou bastante o jogo irônico que Clarice desenvolveu e que eu também ainda não havia notado, sempre me ative mais ao seu lado existencial e meio poético, bastante perceptível em seu "Água Viva".

"Pagu, Muito Além da Modernidade" foi apresentado por Maria Aparecida de Souza que também demonstrou ter realizado uma pesquisa cuidadosa. Falou sobre a história de vida de Pagu, seu envolvimento com as artes e com a política. E, por tabela, acabou me chamando a atenção para um período importante da história do Brasil a que eu sempre me ative pouco.

Neste mesmo dia, também falou Andre Assi, que apresentou seu "Ayaa Hirsi Ali, uma voz feminina contra o Islã". André comentou a vida e o pensamento de Ayaa, uma somáli que se exilou na Holanda e mais tarde passou a falar contra a chamada "excisão faraônica" (ou infibulação do clítoris) e declarou não acreditar em Deus. Acho muito problemático analisar com perspectiva ocidental práticas de outras culturas, mas quando se trata de algo que causa opressão e sofrimento humano, inegavelmente é de interesse de toda a humanidade e deve ser discutido. No entanto, a apresentação, quanto à religião, me fez pensar se há realmente progresso em deixar um dogma (a religião institucionalizada) para aderir a outro dogma (o ateísmo). Me aparece que a "evolução permanente" está no processo de busca contínua por compreensão e não na adesão a dogmas. 

E Mary Wollstonecraft foi o foco do trabalho apresentado pela Roberta Domingues ("Mary Wollstonecraft e Sua Importância Para o Direito das Mulheres"). Culta e bem relacionada, a escritora Mary foi um personagem histórico importante na luta pelo reconhecimento dos direito das mulheres na Inglaterra do século XVIII. Então, se falava em esclarecimento e a mulher continuava oprimida.

Roberta Fiusa, Miguel Vicentin, Maria Aparecida de Souza e a Prof. Marília Pisani.

Da minha parte, procurei desmistificar a imagem "militante comunista durona" que geralmente é atribuída à Rosa Luxemburgo. Apresentei um perfil da mulher Rosa com base nas cartas escritas por ela ao companheiro Leo Jogiches. Ela defendia que cada ser humano vivesse plenamente e isso incluía relações afetivas felizes. Já Alexandra fundamenta historicamente o que seria o surgimento da mulher moderna em fins do século XVIII, sua necessidade de ajustar-se ao nascente mercado de trabalho industrializado e às dificuldades que enfrentavam. 

Também estive presente na palestra do Prof. Hélio Salles Gentil que falou lindamente sobre Lou Salomé, a mulher que encantou Nietzsche e Rilke, e que foi aluna de Freud. Uma apresentação extremamente sensível que beirou o poético! E o Prof. Paulo Jonas de Lima Piva comentou sobre vida e obra de Bukowski (que de sutil não tem nada), desenvolvendo o tema "As Mulheres de Charles Bukowski". Mulheres que não procuram o esteticamente belo, ou melhor o convencionalmente belo, nas relações sexuais. Para mim ficou a questão: desvalorização do amor ou transcendência radical?

No fim, de tudo o que ouvi, me parece que toda a discussão ficou centrada nas divergências entre a síntese de um feminino compreendido como universal ou como particular, como biológico ou como socialmente construído. Interessante que mesmo mulheres falando sobre mulheres dificilmente se chegará a um consenso! Há quem diga que não existe instinto materno, por exemplo, enquanto outras não abrem mão de acreditar na existência dele. Mas eu me pergunto o que é esse tal de "instinto"... Quanto a isso, creio que a fenomenologia, na linha de Husserl, pode ajudar muito.

Me lembro de ter lido uma entrevista com o Lipovetsky em que ele conta ter sido criticado por escrever sobre mulheres. Disseram que ele não poderia falar sobre não sendo ele mulher, ao que ele respondeu que as mulheres não falam de si mesmas e que alguém tem que fazer isso... Pois é preciso que as mulheres falem de si mesmas e não apenas sobre as mulheres de hoje, sobre as mulheres que somos, mas também sobre as mulheres do passado... Quem foram elas, como viveram, o que pensaram... Creio que muito do que se atribui aos homens teve origem no pensamento de mulheres ou passou ao lado dele, como é o caso da Rosa Luxemburgo, que antecedeu a Escola de Frankfurt, e como Alexandra Kolontai, cujos textos, à certa altura, apresentam apontamentos que são perfeitos para uma análise freudiana... No mais, compreender a mulher ao longo do tempo histórico significa, também, compreender melhor os homens e suas atitudes.

Como inegavelmente positivo, também, considero o ótimo nível dos trabalhos dos graduandos e a presença dos homens. Com sincero interesse pelas discussões vários colegas participaram ativamente, procurando compreender melhor esses seres tão complexos que são as mulheres. E fiquei muito feliz por perceber que não se fez notar rivalidades de gênero e sim sincera vontade de buscar por uma harmonia maior entre homens e mulheres. Frente ao avanço das mulheres em todas as áreas os homens tendem a se ver meio que sem saber como agir, o que deles se espera, como se comportar diante dessa nova realidade. Creio que a dúvida é positiva e que só enfrentando o desconhecido é que se pode chegar a relações mais felizes e construir uma realidade social mais satisfatória para todos.