“Nove e Meia Semanas de Amor” foi produzido em 1986. Esteve em cartaz na cidade de São Paulo, no antigo Belas Artes, por longos quatro anos. Marcou época quando eu ainda era jovem demais para compreendê-lo. O texto abaixo é parte de um artigo escrito brilhantemente pela Maria Rita Kehl em 1990.
Minha lembrança adiantada para o próximo dia 8, o Dia Internacional das Mulheres.
O texto é da Maria Rita Kehl.
KEHL, Maria Rita. Nove e Meia Semanas de Amor. In: O Cinema dos Anos 80. São Paulo: Brasiliense, 1991, pp. 207-224.
O texto é da Maria Rita Kehl.
KEHL, Maria Rita. Nove e Meia Semanas de Amor. In: O Cinema dos Anos 80. São Paulo: Brasiliense, 1991, pp. 207-224.
“A eficiência de Kim Basinger nesse filme é que o conjunto de clichês que ela adota para compor sua personagem consegue criar uma espécie de mulher idealizada ali onde não há mulher alguma. Além de linda, Lizz é uma colagem maneirista de sinais de pura feminilidade. Um excesso de boquinhas, mãozinhas no rosto, pezinhos espevitados, olhares encobertos por mechazinhas de cabelo, suspirinhos, sobressaltos, ataquezinhos de fúria, gritinhos – ad infinitum. Tudo em Lizz é inofensivo, infantil, delicioso. Tudo nela é desejável.
‘Como você poderia saber’ – pergunta ela ao amante – ‘que eu responderia a você dessa maneira?’ ‘Isso eu vi em você’ – responde o intrépido sedutor, redondamente enganado. Se John pensa que a passividade de Lizz é uma resposta inesgotável ao seu desejo – se pensa que sua namorada é, como se espera da mulher perfeita, desejo-do-desejo masculino – não imagina que vai perder o bonde na primeira curva: tão logo seu próprio desejo revele a perversão. Ele nem desconfia da integridade de Lizz – integridade de pedra, inquebrável, indevassável –, integridade de narciso. O compromisso com o amante é secundário na vida de Lizz. Seu principal compromisso é com a perfeição e ela escolherá tranquilamente perder o namorado para não macular sua beleza com sinais de uma sexualidade confusa.
O espectador não vai se decepcionar com ela: ela não vai confundí-lo nem se confundir. Pode deixar-se amar nos lugares mais inesperados, debaixo da chuva, na torre do relógio (exibição de atletismo sexual do casal depois de uma exibição de vigor, subir dez andares brincando de pega-pega), no chão da cozinha ou na mesa da sala – mas vai se deixar amar corretamente. Não se deve esperar de Lizz nenhum gesto abjeto. Ela não vai abaixar as calcinhas para o jogo de levar palmadas no bumbum. Não vai rastejar no chão entre o dinheiro e o chicote de John. Ela não vai – nem de brincadeira! – se excitar vendo o amante com outra.
(...)
O prazer (eventualmente excessivo) da mulher só se legitima moralmente se a entrega for por amor. Para que Lizz possa sentir tanto prazer a ponto de perder o caminho de volta é necessário que não seja, justamente, procurando “só o prazer”. A volúpia é imperdoável na mulher – mas o que for feito por amor tem o selo da aprovação moral. Como se o amor não fosse a maior das volúpias! “O amor é a relação do ego com seus objetos de prazer”, escreveu Freud em 1915, derrubando de vez as velhas convicções que tentam separar convenientemente essas duas formas de vínculo.
Lizz não decepciona seu público. Ela recua sempre que o jogo do prazer ameaça ultrapassar os limites do que se convenciona chamar de amor. Recusa o masoquismo (palmadas no bumbum), a rendição do fetiche ( dinheiro/chicote), o voyerismo homossexual. “Por que você fez aquilo?” pergunta ao amante, “você me assustou tanto!”. “Eu queria saber o que você sente”... ele responde, perverso curioso que é. Mas Lizz não quer saber nada. Quando John tenta corresponder ao tal amor verdadeiro e fala da infância, como um menino que diz a lição decorada (ironia do diretor?), é tarde demais: ela já recuperou a lucidez e John, convertido de última hora, fica amargando a lição em seu apartamento vazio. Alguém teria que pagar a conta por tantos pecados cometidos.”
KEHL, Maria Rita. Nove e Meia Semanas de Amor. In: O Cinema dos Anos 80. São Paulo: Brasiliense, 1991, pp. 207-224.
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