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Rest in Peace



 


Não sou uma escritora. Não do tipo que escolhe um tema, que cria personagens fictícios, que estrutura um texto. Não planejo, não defino estruturas e não escolho palavras. Elas me escolhem, me agarram, penetram meu cérebro e escorrem pelos meus dedos por impulsos. São orgânicas, sedutoras, ditadoras que se insinuam e se impõem. Não há nada que escrevo que não seja um eu pontual e sem invenções. Fluxo. Momentânea nudez em palavras.





Ando avessa a longos textos de Internet. Essas coisas cansativas e pretenciosas. Morri, renasci. Minhas percepções mudaram. Minha disposição mudou. Sejamos breve, pois a vida é breve. Cada vez mais menos precisa ser dito. Mas, o não dito sufoca.





David Bowie morreu. Eu ainda não acredito... Mas, sufoco. As palavras se contorcem, estremecem, se encolhem e fogem de medo. As palavras se dão conta de sua inutilidade, mais uma vez... Palavras, sejam corajosas!





Bowie talvez seja o mais perfeito exemplo de vida autêntica, de homem que ao moldar-se moldou um mundo. Numa época em que muitos se perdem no produzir para aparecer, ele, até seu último instante, aparecia porque criava o indispensável. Sutil e decisiva diferença!





Bowie partiu e com ele uma era se foi... Que medo desse nosso tempo de almas perdidas, combalidas de tanto nadar na superfície do caos! Pelos menos se fosse o próprio caos...





Tomei contato com seu trabalho no início da década de 80, antes por textos a seu respeito e só depois por sua música. Seu nome emergiu para mim por meio dos escritos de Andre Forastieri, então jovem jornalista e crítico da Som Três. Forastieri já escrevia muito bem, subvertia a mesmice das coisas e me fazia pensar "quando eu crescer quero escrever assim". Forastieri contava a história de um camaleão humano e suas peripécias, tecia elogios numa linguagem que para mim, naquela aurora da vida, parecia obscura e, por isso mesmo interessante. Sempre tive fascínio pelo incompreendido e mais ainda pelo incompreensível... Para entender Forastieri fui ouvir Bowie. Entendi que havia mais entre o céu e a Terra do que ainda não supunha minha inerente filosofia. Bowie era o espelho invertido de uma época. Ostentava mundos ocultos a decifrar pela interpretação de imagens, sons, timbres, ritmos, pausas e palavras... Sempre as palavras!





No último dia 11 de janeiro, quando o mundo nublava com a notícia da partida de seu starman, para falar de Bowie Forastieri deu voltas, engasgou e se saiu com um “resisto às palavras”, seguido de um pedido de silêncio “em homenagem a David Bowie, que não se deixou silenciar com a noite próxima - que enfrentou com fúria a chegada da escuridão”... E disse tudo! Bowie, que ao longo de cinquenta anos de carreira, sempre deu tanto o que falar, partiu e nos deixou engasgados com palavras... Apenas o silêncio inconformado lhe faz justiça...