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As Faces de Freddy


















Um filme: As Faces de Helen. Chamou minha atenção por causa do nome da personagem (claro!) e porque tem Ashley Judd (a mãe da Tris de Divergentes). Não li nenhuma sinopse, não sabia do que se tratava e parei para assistir no final da tarde de um enfadonho domingo de natal.



É sobre depressão. A história de Helen, uma musicista e professora universitária bem-sucedida, mãe e esposa amada e admirada, e também de sua aluna Mathilda. Ambas às voltas com crises de depressão suicida. O filme é triste, mas não chega a ser desesperador. A diretora, Sandra Nettelbeck, soube fazer um longa que é até instrutivo para quem ainda acha que depressão é “frescura”, porém sem ser chato ou negativo a ponto de beirar o insuportável. Dá para assistir numa boa. E o destino das personagens me fez lembrar as palavras do Spinoza: "Nossa felicidade ou infelicidade depende da qualidade do ser com o qual nos unimos por amor"... Depende, mesmo! Em boa parte, pelo menos.



E o ser mulher, na história, tem algo de determinante... Entre se propor a conhecer um homem, e mesmo flertar com ele, e pedir para ser tratada com violência e estuprada há universos... E esse foi um assunto muito em evidência em 2016, não? O mal que os homens fazem às mulheres e que muitos querem minimizar culpando a própria mulher...



Os últimos 365 dias colocaram muito em evidência a falta de sintonia entre o padrão feminino que a sociedade procura fabricar em série e as condições de segurança física e emocional de que as mulheres dispõem. No geral, não se compreende o conflito que se estabelece entre as necessidades femininas e a alma da “boa moça”, a “bela, recatada e do lar” Conflitos subjetivos e objetivos do ser biológico submetido à cultura de uma sociedade patriarcal e ao machismo nem sempre evidente. Mas ainda se continua a insistir na manutenção do padrão que é opressivo, violento e muitas vezes debilitante.



2016 foi ano de pesadelo social... (vasto assunto). O que já parecia estranho tornou-se surreal, com o Brasil mergulhando em um estado de exceção vergonhoso, com políticos e mídia distorcendo a realidade no limite... A grande ironia, para mim, que passei anos estudando a razão, é ter que lidar com a desrazão, que percebo se manifestando em todas as dimensões da vida, tanto pessoal quanto social. Parece que tudo flerta com a loucura e está à deriva em meio a tempestades sem precedentes e existências humanas que já são tempestuosas por natureza.



Como produto desse ambiente de sofrimento psíquico, hoje se diz que a depressão é uma epidemia ou que atinge números alarmantes. A minha própria história de depressão começou em 2010, atingiu o auge em 2011 e 2012, período em que passei a vasculhar os escombros da minha própria existência buscando compreender os processos de causa e efeito. E compreender-se não é alento, pode ser simplesmente adentrar um labirinto.



Em 2013 eu deixei de acreditar em soluções coletivas. No início do ano eu já via o que se manifestaria em 2016 e as origens. A política brasileira naufragava e era tudo humano, muito humano... E perceber a ponta do iceberg da miséria humana não ajudava a melhorar o meu estado emocional. Agora, olhando para trás, percebo que foi o momento em que entrei em suspensão. Me retirei, me coloquei em um locus que beira o inacessível. Meus poucos amigos que o digam! Sou eu comigo, anulando estímulos ambientais, pois tudo parece excessivo. Mais riscos, mais decepções, mais dor? Não.



Mas, em meados de 2015, o retiro me fazia bem e eu me sentia melhor, voltava a ler textos filosóficos e passava a conhecer uma outra face de Nietzsche, filósofo amado que fazia mais sentido do que nunca pra mim. Em fins daquele ano eu me tornava aluna da UFABC. Fui estudar Foucault com a Suze Piza, professora fantástica, e emendei 2016 como aluna especial do Mestrado em Filosofia, estudando Teoria Crítica em curso da Marília Pisani, com quem desde 2009 venho aprendendo tudo o que sei a respeito. Em setembro apresentei trabalho no Congresso de Filosofia da Libertação, organizado pela UFABC... Mas tudo voltou a ficar confuso quando a melancolia ressurgiu, então com outras feições.




One, two, Freddy is coming for you.

Three, four, better lock your door.

Five, six, grab your crucifix.

Seven, eight, gonna stay up late.

Nine, ten, never sleep again.





O cinema dos anos 80 ficou marcado pelo surgimento de um personagem: Freddy Krueger, de A Nightmare on Elm Street, ou A Hora do Pesadelo. Como diz a Wikipedia: “Freddy é um assassino de crianças da fictícia Springwood, Ohio, que após ser queimado por pais vingativos passa a atacar adolescentes em seus sonhos, matando-os no mundo real por tabela. O facto de ter o poder de controlar os sonhos das pessoas e matá-las durante o sono, valeu-lhe as alcunhas de ‘Lorde dos Pesadelos’ e ‘Senhor dos Sonhos’.” Foi grande o sucesso do personagem na época e vários os filmes da série (9 ou 10, se não me engano), porém eu nunca assisti nenhum deles. Não via e não vejo sentido em assistir a filmes que me dão sustos, que despertam terror, horror, medo, inquietude. Freddy é só um personagem de que ouvi falar e que se tornou emblemático. Porém, meses atrás precisei pedir ajuda para me livrar do que me persegue à noite.



O meu “Freddy pessoal” faz com que todo o ar suma enquanto corro contra o vento... Minhas pálpebras grudam nos globos oculares secos e ardentes. Minhas narinas e garganta perdem completamente a umidade e sufoco. Parece que levo uma paulada na nuca tamanha a dor. A cabeça lateja ao ritmo das batidas do meu coração, que se manifesta em trovoadas retumbantes. Sinto meu cérebro, que vibra e dói enquanto o peito parece que vai entrar em erupção, tamanha pressão. O corpo inteiro dói como se tivesse ficado imóvel por um longo tempo ao mesmo tempo em que sinto que corri por léguas e estou exausta... Não é um sonho. É assim que me sinto quando acordo no meio da madrugada e por vários minutos depois de acordar... E como as vítimas de Freddy, passei a ter medo de dormir e de morrer dormindo. Não que morrer me assuste ou que seja algo indesejado, mas sempre tive medo da dor. E por ter medo dela nunca fui uma suicida que se levasse a sério, embora desde a adolescência não venha achando muita graça na vida. E não por falta de tentar.



Ao buscar orientação, tudo o que consegui são diagnósticos clínicos vagos, como “distúrbios de ansiedade” e “fobias”... No Brasil chegar a um psicólogo ou psiquiatra por meio dos serviços públicos de saúde está me parecendo coisa para herói. Embora eu conheça alguns profissionais particulares eles não podem me ajudar muito, oficialmente falando, e acabo sendo novamente lançada à esfera de influência do médico de família que parece muito preocupado com os gastos estatais e as economias de recursos (em que situação se cai por conta do sistema público de saúde!). Ou como disse o tal médico de família, ”você é filósofa, então a filosofia talvez possa ajudar”... Bem, não sou filósofa clínica; a Teoria Crítica, minha área de estudo, me dá angústias e não consolos. E se um psicólogo não pode tratar a si mesmo, porque cargas d’água um filósofo deveria fazê-lo? De qualquer forma, encontrar respostas prontas para inquietudes da alma não se faz sem viver inquietudes. Eu estou em fase de vivê-las. 



Conselho que muito frequentemente tenho ouvido dos meus professores é que se faça filosofia a partir dos próprios dramas pessoais. Seria a forma mais acertada de ser autêntico. Eu concordo e também acredito que expor-se é coisa para gente corajosa. Mas, não sou corajosa e não tenho intenção de fazer filosofia a partir desse drama. Escrevo apenas com a esperança de que escrever ajude a colocar em ordem os pensamentos, como já ajudou em outras épocas. Me sinto como quem caiu em uma armadilha sem nem saber como. Me sinto como quem anda em círculos num labirinto no qual, como disse Mathilda, “Lembro de ter a sensação de que a realidade é fina. Eu acho que é fina como o gelo de um lago após esquentar. E preenchemos nossa vida com ruído, luz e movimento para esconder a finura de nós mesmos." Mas e quando a gente não consegue esconder?




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