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Luka



"Imagino que uma chama que queime com tanta intensidade não seja feita para durar."
[Veronica Roth]


9 de abril de 2017... Domingo de Ramos ... Sete dias para a Páscoa ... Há 30 dias você partiu ...

Também a nossa história começou em um domingo. Num dia chuvoso e meio frio do inverno do ano passado. Naquele dia você deixou a casa da sua mãe e me foi entregue. Ao longo de todo o caminho,  veio com a cabeça apoiada no meu peito, meio que dormindo. Sonolento, ainda um bebê, já não era pequeno e já era bem pesado. Você sempre foi grande e pesado, mas isso apenas porque em casa estávamos acostumados com cães pequenos e sempre "meninas". Você,  inverteu todos os costumes, perverteu todos os hábitos, chacoalhou as zonas de conforto.

Sempre quis que você fizesse companhia para a Maia. Ela precisava conviver com um semelhante de quatro patas, para se encontrar. A Maia vivia meio que em crise de identidade sem saber  o que ela era. E você a adorou desde o primeiro instante. E ela também gostou de você... Mas, você já chegou maior do que ela, com unhas e dentes fininhos que voavam na direção de tudo e todos (minha pele tem marcas ainda hoje), então a convivência de vocês nunca foi exatamente fácil. Quando você passou a brincar no quintal, pulava em torno dela até deixá-la exausta. Por duas vezes ela gritou, lembra? Gritos de "socorro, me tira daqui, ele vai me pisotear". Eu sempre tinha que separá-los para que você não a machucasse. Ela meio que passou a repudiá-lo, em alguns momentos o ignorava, em outros se mostrava brava como quem dizia "você é grande, mas quem manda aqui sou eu". E, de alguma forma, você passou a entender e aceitar que quem mandava era ela. 

Mas, ela gostava de você... Lembra quando você voltou da clínica depois da cirurgia? Diante de um Luka, viajandão, ainda anestesiado, que ficava parado olhando pro nada, ela ficou desconcertada e empurrou com o narizinho, na sua direção, a bolachinha adorada, que ela tinha escondido para comer mais tarde... "Toma Lukinha, pra você a minha bolachinha"... Às vezes ela fica parada, olhando pro quintal, e eu tenho a impressão que ela está esperando você voltar da clínica... Falei pra ela que "o Luka foi passear", porque "passear" é uma palavra que faz parte do pequeno dicionário dela e que ela entende como uma coisa boa.

Você não entendia coisas como tamanho, peso, perigo, regras, o que podia, o que não podia.  Era um trem desgovernado, um furacão destruidor. Mordia tudo, se jogava contra tudo e todos. Brincando destruia todas as coisas. No nosso quintal tinha um cachorro voador. Você não se jogava do piso superior do quintal para o inferior, você se lançava para cima, como se fosse um pássaro destinado a alcançar as alturas.  Então, às vezes, eu tinha que prendê-lo para que você não acabasse com uma pata torcida, ou coisa pior. E sempre crescendo mais e mais e mais... Estava quase do meu tamanho!

Imagino que por ter nascido com tantos irmãos seu instinto fosse o de sacudir o mundo para não passar desapercebido entre eles. E você não passava. A certa altura decidiu que ninguém deveria ultrapassar o portão de entrada sem que você fosse junto. E gritava, chorava e gania a cada vez que alguém tinha que sair. "Também voooooooou"... E daí que tive que começar a levantar todos os dias às cinco e meia para distraí-lo com bolachas e carinho, ou o Deni não consegui sair para o trabalho sem que você acordasse a vizinhança toda, ou escapulisse por entre as pernas dele e quase acabasse atropelado por um carro que ia passando, como aconteceu naquela vez.  Que sorte que o motorista estava atento! Passei a dormir menos. Ainda hoje acordo no mesmo horário e fico olhando para o quintal... 

E você era tão carente, apesar de ter tanta atenção... Não perdia a oportunidade de mastigar minhas mãos no limite, como querendo engolí-las. E se esforçava para subir no colo quando, com dezessete quilos, eu já não conseguia pegá-lo. Então, eu tinha que deixá-lo fora do escritório, ou não conseguia trabalhar.  Mas, você não desistia de me seguir com os olhos e ficava horas me observando através da porta de vidro. E hoje eu ainda olho para aquela porta e aceno, como se você estivesse ali, me observando...

Até o fim você ignorava regras e limites com bom humor. Não estava nem aí... E, à certa altura, me lembrei do Freud e seu "Mal-estar na Cultura". Os seres humanos, desde o nascimento, têm seus instintos reprimidos para que se adaptem ao comportamento esperado e, muitas vezes, se tornam desajustados e infelizes. Você podia ser temporariamente contido, mas não permitia que o moldassem. Cedo percebi isso e tive orgulho de você. A questão passou a ser não mais como adestrar o Luka, mas como respeitar o seu jeito de ser e harmonizar o meu modo de agir com o seu comportamento natural. Daí que foi você a me disciplinar, mais do que eu a você. E era mesmo o que eu mais precisava: autocontrole, cuidar de mim para conseguir cuidar de outros com todo o respeito pelo que os outros são. 

Como mega-hiper-ativo, você não prestava muita atenção nas coisas e por isso demorava para aprender. Mas, à certa altura, encontrou o seu jeito de perceber e de mostrar que percebia. Ficava me olhando e a gente se entendia pelo olhar, colocava a cabeça no meu ombro quando eu ia arrumar sua cama no final da noite e ficava me ouvindo dizer bobagens... Era seu jeito de dizer "Obrigado! Também te adoro!". Só nos nossos últimos dias me dei conta de que você havia aprendido seu nome... Ainda hoje arrumo sua cama, cuido da sua casinha como se você estivesse aqui e vou guardar o seu adorado Luigi com a nossa musiquinha pra sempre...Ta-ra-ra-ta-ta-ta-ta-tá-ra-tá-tá...

Não faz muito tempo eu observava você andar pelo quintal e me admirava de ver como estava forte, cheio de saúde e de energia. Parecia imbatível... Pensei que envelheceríamos juntos. E que ótimo companheiro você teria sido! Gostava de comer, de descobrir novos sabores, novos sons, novas sensações. Isso a gente podia compartilhar: as descobertas. E havia tanto para você descobrir...

Sempre procurei proteger você de si mesmo, para que não se machucasse, mas não foi o suficiente para mantê-lo a salvo... Ainda hoje não sei o que aconteceu ou onde eu falhei... Mas, queria que você pudesse sentir os meus sentimentos, o carinho e a ternura por você, o desespero por ver você partir sem que eu pudesse fazer nada, a impotência, a falta que você me faz em todos os momentos, a esperança de que amor e lembranças tenham o poder de manter vivos aqueles que se foram... Apenas não duvide do quando foi querido e amado, apenas  não seja carente e sim pleno de amor... Você mudou tudo, me tornou mais forte e não vai ser esquecido enquanto eu viver.

E Lu, quando acabar o meu tempo, vem me buscar...


Até um dia, Lukinha!