UMA EPISTEME JUDAICA-CRISTÃ
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O niilismo provém das turbulências registradas na zona de passagem entre o judeo-cristão ainda muito presente e o pós-cristão que desponta modestamente, tudo num ambiente em que se entrecruzam a ausência dos deuses, sua presença, sua proliferação, sua multiplicidade extraordinária e sua extravagância. [...] A negatividade procede do niilismo consubstancial à coexistência de um judeo-cristianismo delinquente e de pós-cristão ainda no limbo.
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O judeo-cristianismo deixa atrás de si uma episteme, um pedestal sobre o qual se efetiva toda troca mental e simbólica. Sem o padre nem sua sombra, sem os religiosos nem seus turiferários, os indivíduos permanecem submissos, fabricados, formatados por dois milênios de história e de dominação ideológica. Daí a permanência e a atualidade de um combate contra essa força ainda mais ameaçadora por dar a impressão de caduca.
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Muitos indivíduos que se acreditam ateus professam sem perceber uma ética, um pensamento, uma visão de mundo impregnadas de judeo-cristianismo.
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Em A Religião nos Limites da Simples Razão Kant propõe uma ética laica. Leia-se esse texto da maior importância para a constituição de uma moral laica na história da Europa e nele se descobrirá a formulação filosófica de um inextinguível legado judeo-cristão. A revolução se identifica na forma, no estilo, no vocabulário, ela parece evidente diante do modo e da aparência, sim. Mas em que diferem a ética cristã e a de Kant? Em nada... A montanha kantiana pare um camundongo cristão.
TRAÇOS DO IMPÉRIO
Michel Foucault denominava episteme o dispositivo invisível mas eficaz de discurso, de visão da coisas e de mundo, de representação do real que trancam, cristalizam e endurecem uma época em representações imóveis.
A episteme judeo-cristã denomina o que, desde as crises de histeria de Paulo de Tarso no caminho de Damasco até as intervenções planetariamente televisadas de João Paulo II na Praça de São Pedro, constitui um império conceitual e mental difuso no conjunto das engrenagens de uma civilização e de uma cultura.
Dois exemplos, entre uma multidão possível, para ilustrar minha hipótese da impregnação: o corpo e o Direito.
A carne ocidental é cristã. [...] O corpo que habitamos, o esquema corporal platônico-cristão que herdamos, a simbólica dos órgãos e suas funções hierárquicas [...] a espiritualização e a desmaterialização da alma, a articulação de uma matéria pecaminosa e de um espírito luminoso, a conotação ontológica dessas duas instâncias artificialmente opostas, as forças perturbadoras de uma economia libidinal moralmente apreendida, tudo isso estrutura o corpo a partir de dois mil anos de discursos cristãos: a anatomia, a medicina, a fisiologia, decerto, mas igualmente a filosofia, a teologia, a estética contribuem para a escultura cristã da carne.
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A TORTURA ORIUNDA DO PARAÍSO
Segundo exemplo: o Direito.
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Pois os próprios fundamentos da lógica jurídica provêm das primeiras linhas do Gênese. Daí uma genealogia judaica – o Pentateuco – e cristã – a Bíblia – do Código Civil Francês. O aparelho, a técnica, a lógica, a metafísica do Direito decorrem diretamente do que ensina a fábula do Paraíso original: um homem livre, portanto responsável, portanto possivelmente culpado. Porque dotado de liberdade, o indivíduo pode escolher, eleger e preferir isto a aquilo no campo dos possíveis. Toda ação procede pois de uma livre escolha, de uma vontade livre e manifesta.
O postulado do livre-arbítrio é indispensável para considerar o seguimento de toda ação repressiva. [...] A partir daí, nesse esquema, e segundo o princípio editado nos primeiros momentos das escrituras, o juiz pode se fazer de Deus na terra...
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Quando um tribunal funciona sem sinais religiosos, ele se ativa no entanto tendo em vista essa metafísica: o estuprador da criança é livre, tem a escolha entre uma sexualidade normal com um parceiro conivente e uma violência assombrosa com vítimas destruídas para sempre. Em sua alma e consciência, dotada de um livre-arbítrio que lhe permite querer isso em vez daquilo, ele prefere a violência – ao passo que poderia ter decidido diferente! De modo que no tribunal pode-se pedir-lhe prestação de contas, escutá-lo vagamente, não o ouvir e mandá-lo passar anos numa prisão onde provavelmente será violentado à guisa de boas-vindas antes de apodrecer numa cela da qual será tirado depois de ter deixado de lado a doença que o aflige...
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Esse conluio entre livre-arbítrio e preferência voluntária do Mal ao Bem que legitima a responsabilidade, portanto a culpa, portanto a punição, supõe o funcionamento de um pensamento mágico que ignora o que a diligência pós-cristã de Freud esclarece com a psicanálise e outros filósofos que evidenciam o poder dos determinismos inconscientes, psicológicos, culturais, sociais, familiares, etológicos, etc.
O corpo e o Direito, mesmo e sobretudo quando se pensam, se acreditam e se dizem laicos, procedem da episteme judeo-cristã. A isso poder-se-ia acrescentar, para completar o inventário dos domínios implicados, mas não é aqui o lugar, as análises sobre a pedagogia, a estética, a filosofia, a política [...] e de muitas outras atividades cuja impregnação religiosa bíblica poderiam mostrar.
ONFRAY, Michel. Tratado de Ateologia. São Paulo: Martins Fontes, 2014.