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Dor


Ao escrever, sempre menciono Nietzsche aqui e ali. Sem dúvida, li mais os seus textos e, nos últimos anos, estive mais envolvida com reflexões acerca de seu pensamento. Porém, na verdade, não posso afirmar que ele seja meu filósofo preferido. Nietzsche divide esse posto com Spinoza.

Estudei Spinoza no primeiro semestre de 2010. Confesso que não me lembro dos detalhes do que aprendi na época. Me lembro do essencial e do impacto que exerceu sobre mim. Tudo começou quando ouvi a frase “o corpo é memorioso”. Significa que tudo o que é vivido não é guardado apenas pela mente e sim pela totalidade do corpo físico. Entendo que o corpo, sendo uma configuração de energias, também é um complexo físico-químico que converte energias em um sistema formado por órgãos que se relacionam entre si. Tudo o que o corpo vive, imerso no meio ambiente e no contexto social, o impacta em sua totalidade e o transforma. Daí que o passado está presente no corpo hoje. 

Assim, eu sou, hoje e sempre, a soma de todas as transformações que as relações com outros provocaram no meu corpo, dos afetos que essas interações fizeram nascer. Não existe “ficou no passado”, “passou”, “já era”... Ora, minhas terminações nervosas transmitem sinais às várias instâncias do meu corpo, os órgãos produzem ou não secreções, hormônios, fluídos de vários tipos, qualidades e quantidades e isso tudo resulta o meu eu.

Afetos, ou paixões, alegres ou tristes alteraram e alteram, irreversivelmente, meu conatus, ou a totalidade das energias vitais que sou eu… Eu sou um laboratório físico-químico-biológico alterado por tudo o que me afeta… E isso fez e faz todo o sentido para mim! Algo que está “esquecido”, ao mesmo tempo marca meu corpo como cicatriz. E não pode ser de outra forma.

“O corpo é memorioso” desencadeou em mim um processo de autoanálise que durou cerca de uma década. Um caminho de revisão minuciosa da vida, das minhas relações com o mundo e com todas as coisas. Spinoza deu início à minha desconstrução mais profunda. E eu sempre penso que isso seria assunto para livros interessantes, se eu tivesse tempo e forças para escrevê-los... Mas, foi Nietzsche quem me resgatou do limbo, principalmente a partir de 2016, quando tive que me haver com a síndrome de pânico (sim, o mundo pode causa repulsa e gerar pânico!).

Percebo a ética nietzschiana como um desdobramento ou uma continuidade da ética spinozana. A concepção do corpo como configuração de energias está presente em ambas. Nietzsche dá uma ênfase maior ao ser humano como “produto” da história e como criador de valores éticos. Não por acaso Spinoza e Nietzsche estão muito presentes na teoria da psicanálise de Freud, que tem como princípio a Física, mais especificamente a teoria da entropia. E esse processo de resgate também seria assunto para livros interessantes, se, etc…

Diz a sabedoria spinozana que para estar bem, saudável, é preciso equilibrar os afetos positivos e negativos, ou as paixões alegres e tristes. No momento, estou escrevendo porque as minhas paixões voltaram a se desequilibrar e me sinto doente. Momento de, novamente, transvalorar, ou seja ampliar as perspectivas sobre todas as coisas e atribuir-lhes novos significados! Na verdade, finalmente. Demorou, até! Após um ano e meio de pandemia vivida em meio a um contexto social e político que me causa indignação e náuseas dia sim e outro também, com a sensação de estar perdida em meio ao caos, embora caminhando com um certo senso de direção, me perdi na dor... Isso dói... Meu corpo, sobrecarregado de afetos negativos, dói!

Mas, esse não é um texto de vitimismo, de complacência, ou de pena de mim mesma. É apenas uma pausa... O conceito nietzschiano de fatalismo russo, que se tornou tão caro para mim, é o que dá sentido a essa pausa, como já fez com outras. Quando o soldado russo se percebe exaurido em meio à guerra e ao inverno rigoroso, ele hiberna, como os ursos... Assim, enquanto poupa as forças, o mundo gira, tudo se transforma ao redor e, ao acordar, pode-se estar revigorado e em um novo contexto, ou não.

Não posso dormir como uma ursa, mas posso, sim, fechar as portas e janelas da mente. Eis o início do renascimento! Se tudo correr bem, enfim, talvez algum dia eu me fortaleça o suficiente para escrever aqueles livros sobre minha relação com Spinoza (principalmente) e também com Nietzsche… Ou não.