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Drive


[ Texto publicado originalmente em 17 de Fevereiro de 2015 ]

Em 2011 Drive surpreendeu crítica e público, chegando a ser premiado em Cannes por sua Direção. O filme é tão intrigante, que não resisto a comentá-lo, mesmo com atraso. 

Muito se falou que Drive lembra Taxi Driver, de 1976, e produções dos anos 80. Verdade. Mas, a mim lembra mais especificamente Colateral, de 2004, em que o personagem de Tom Cruise obriga um motorista de táxi a levá-lo até as vítimas de seus crimes, ao longo de uma noite. Também lembra Invasão de Privacidade, de 1993, com Willian Baldwin e Sharon Stone, pelo uso da música sintética e viajante, pela sensação de estranheza e por uma certa sofisticação visual urbana. Apenas lembra... Drive não é uma colcha de retalhos ou uma cópia mal feita, de forma alguma.

Diz o zodíaco que escorpianos são seres misteriosos, introvertidos, sensíveis e de uma profundidade d’alma assustadora. Supostamente também são apaixonados, sensuais, leais, obsessivos, vingativos e até cruéis. James Sallis ao compor o personagem principal de Drive, o livro, parece ter levado em conta estas características e fez do escorpião o seu símbolo.



E Drive tornou-se o filme em que Ryan Gosling interpreta um personagem sem nome, que seria chato, tedioso, muito chato... Vamos chamá-lo de o “Motorista”... O Motorista fala muito pouco ou não fala. Ele é um ser lento e sonolento, num corpo magro, porém forte, ainda jovem e aparentemente bem cuidado. Seu mutismo e lentidão fariam desistir do filme nos primeiros minutos não fossem detalhes alheios ao personagem.

Baseado no texto de James Sallis, roteirizado por Hossein Amini e com direção de Nicolas Refn, Drive é um caso em que as partes interagem entre si para que a totalidade se torne a melhor possível. O espectador não assiste meramente, ele é colocado à mercê da influência de sons e imagens que penetram sua alma, colocando-a num estado singular, numa certa confortável melancolia urbana contemporânea. Tempos e ritmos incomuns levam a experiências incomuns.

O personagem chato se torna interessante por estar cercado por imagens interessantes, por música interessante e por mover-se numa Los Angeles noturna em ritmo envolvente. O conjunto dá pistas de que no homem desinteressante há algo que interessa. Ele é um mistério que o filme deve revelar. A narrativa faz isso... E não faz. Nunca se saberá de onde ele veio e para onde ele vai. 

O Motorista é dublê em filmes de ação, mecânico em uma oficina durante o dia, aspirante a piloto de stock car e, para completar, motorista ocasional de criminosos em fuga. As várias atividades mais o hábito noturno de deixar um apartamento vazio para rodar pelas ruas de Los Angeles explicam o sono desregulado. Mas, parece que não só. O Motorista é um solitário. Sua introversão parece ser causa de algo e estar à espera de algo.


E que relação metafísica é esta que se estabelece entre coincidências e paixão? O Motorista, do nada passa a esbarrar em sua vizinha (Irene, Carey Mulligan) no elevador, no supermercado, no estacionamento. Ela tem um filho (Benicio, Kaden Leos), um marido na prisão (Guzman, Oscar Isaac) e não se mostra mais comunicativa do que o nosso protagonista. Na relação dos dois parece faltar palavras, ou elas não são necessárias. Num acordo implícito eles vão com calma e dão-se as mãos sob amuleto da sorte. Mas, a sorte é caprichosa. O marido sai da prisão e a relação fica em suspenso, sem que ao espectador se revele um abraço, um beijo.

O que parece descambar para um drama romântico do tipo “o mocinho apaixonado pela mulher do ex-presidiário”, dá uma guinada que muda o tom da narrativa. Guzman, o marido, tem uma dívida que se não for paga pode colocar em risco a segurança de mulher e filho. O Motorista, para ajudá-lo, concorda em dirigir em um assalto. As coisas saem do controle, tomam rumos inesperados. A violência em Drive é chocante e exagerada, mesmo para um filme de ação, e tem muito das produções de Scorsese e Tarantino.

A sequência dos fatos deixa claro que o Motorista não é apenas um homem solidário e introvertido. Sua disposição para matar de forma calculada, com movimentos frios, objetivos e determinados não sugerem inexperiência. E é por conta destas passagens que não se pode dizer que Ryan Gosling tenha uma atuação incompetente. Seu personagem, na maior parte do tempo quase inexpressivo, aparece como o ator deseja e ou como resultado do modo como sua interpretação foi dirigida.

De qualquer forma, o Motorista tinha a própria vida sob controle até passar a esbarra em Irene e a alimentar esperanças de tornar-se menos solitário para, em seguida, apenas ver seu castelo de areia desmoronar, sua estabilidade, segurança e seus projetos de futuro evaporarem. Na produção Drive não deixa nada ao acaso, cada parte é muito bem orquestrada. Mas, sua história é justamente sobre o que sai do controle, sobre o que não se pode prever nem evitar. Mesmo fazendo tudo certo, tudo pode dar errado a partir de um esbarrão no elevador.

Há questões éticas implícitas, que não assumem maior relevância na história. Não chegam a entrar em questão o certo ou o errado da ajuda na fuga de criminosos e de outros elementos de moralidade duvidosa. Trata-se mais do amoral, de instintos e impulsos humanos e de acasos.

O protagonista chato e seu romance quase platônico ganham a cena e ganha o público sem que se saiba exatamente como e em que momento isso ocorre. O gesto de carinho entre o Motorista e Irene, quando finalmente acontece é de uma beleza deslumbrante e com conclusão chocante digna de ser chamada de arte! Paixão é simplesmente isso, doçura e violência que acorda quem dorme, força que demole e reconfigura mundos. Sem previsão, sem explicação, sem contenção.

E no todo, Drive não merece ser esquecido, pois no cinema, bom é aquilo que não é o que se espera e que encanta justamente por não ser.