
Ridley Scott cometeu um grande erro com Cruzada: contentou-se em fazer um bom épico quando poderia ter filmado um grande clássico.
O diretor conta a história de Baliam (Orlando Bloom), um ferreiro que perde o filho e logo depois enfrenta a dor provocada pelo suicídio da esposa. No cristianismo, o desespero dos suicidas representa a perda da fé e o conseqüente distanciamento de Deus, justamente no momento em que a alma mais precisaria estar perto Dele para colocar-se a caminho do reino dos céus. A esposa de Baliam estaria condenada ao Inferno. Neste momento de amargura o ferreiro é visitado por um cavaleiro (Godfrey de Ibelin, Liam Neeson) que se apresenta como seu pai e propõe que o acompanhe a Jerusalém.
Era início do século XII e desenrolava-se o drama das Cruzadas. Acreditava-se que morrendo em tais expedições se conquistaria o perdão dos pecados e a salvação eterna. Talvez, assim, Baliam pudesse ajudar a esposa perdida. Mas ele perde também o pai, mortalmente ferido ao defendê-lo, e dele herda casa, servos, gado e a posição de cavaleiro junto ao rei de Jerusalém, Baldwin IV. Edward Norton é o rei Baldwin, um monarca que se apresenta a seus súditos ricamente vestido, mas com a pele coberta por faixas e uma máscara metálica. Diagnosticado com lepra com apenas nove anos, o então pequeno príncipe sobrevive por tempo suficiente para tornar-se um grande rei. O sofrimento fez dele uma alma nobre e um homem que não hesita em sacrificar seus últimos momentos de vida pela segurança de seu povo, atacado pelos guerreiro muçulmanos de Saladin (Ghassan Massoud). A identificação entre Baldwin e Baliam é instantânea, rei e súdito procuram entender Deus acima dos dogmas e fanatismos religiosos, ambos respeitam a vida e desejam proteger o povo. É a breve relação, porém forte e bela, de dois iguais que se reconhecem.
O filme chama a atenção, inicialmente, pelo bom gosto das cenas. Em boa parte as imagens foram tratadas por uma iluminação azulada que lhes dá um tom invernal. O contraste com a luz do sol deixa um brilho que contribui para a beleza da fotografia. Já a trilha sonora de Harry Gregson-Williams conta com passagens vocais apropriadas, mas as orquestrações não apresentam a dramaticidade que faria o diferencial para colocar o filme no caminho de arrebatar o sentimento do público
Há muitos figurantes e personagens de pequena projeção, como é comum em épicos. Liam Neeson é um daqueles atores que dão um tom de grave dignidade e classe a qualquer personagem. Jeremy Irons, como Tiberias, está correto. Eva Green como Sibylla está perfeita, expressiva e trágica! Marton Csokas como Guy de Lusignan faz o típico vilão com uma interpretação clichê. Faltou personalidade própria a Guy que ficou reduzido a um antipático ganancioso. Edward Norton não mostra o rosto em nenhum momento, mas deixa sua marca inconfundível. Um interprete de Baldwin que não conquistasse o público seria muito incompetente e como incompetente Norton não é, o personagem torna-se um gigante, a melhor coisa do filme!
Orlando Bloom fez um bom trabalho, creio que o melhor que pôde, mas o melhor dele não foi o suficiente para dar asas ao filme. Faltou carisma e ele não conseguiu dar força a um personagem que aparece em cerca de oitenta por cento das cenas. Matthew Macfadyen (Orgulho e Preconceito) ou Christiam Bale (Batman), por exemplo, teriam feito com Baliam algo ao nível do que fez Russell Crowe com Maximus de Gladiator.
Por outro lado, a importância dos personagens não é menor do que a da própria caracterização do contexto histórico. Nisso Ridley Scott foi muito bem sucedido. Sua câmeras passeiam por dois universos distintos, oferecendo quadros sem preconceitos seja do mundo muçulmano, seja do universo cristão. Saladin não é retratado como um bárbaro que come criancinhas no café da manhã e sim como um estrategista inteligente. Há reconhecimento e respeito entre adversários que, na verdade, são apenas homens lutando por uma causa que eles mesmo, muitas vezes, nem entendem bem.
A discussão religiosa é sempre delicada. A questão é separar o que é apenas vaidade dos homens e o que é caminho para se chegar a Deus. Historicamente, fragilidades e medos são usados contra toda a humanidade; fé e temor a Deus são manipulados para promover guerras milenares e sofrimentos incalculáveis, supostamente para agradar um Deus, cuja ordem máxima dada a suas criaturas foi “amai-vos uns aos outros”. Um Deus do amor teria satisfação diante da carnificina perpetrada pela ignorância humana?
As questões que envolvem Jerusalém e a Palestina são tão críticas hoje como eram há quase mil anos. As religiões organizadas não conseguem dialogar e agir de maneira a garantir condições para o que é necessidade básica dos homens: viver em paz. Passaram-se mais de dois mil anos desde o nascimento de Cristo e jovens ainda perdem a vida em guerras fraticidas para saciar a ganância de alguns poucos poderosos, que não sabem como aproveitar o poder que têm. Personagens como Baliam e Baldwin mostram que com espírito crítico, independência de pensamento, perseverança e nobreza de alma é possível dizer um grande “não” à maré dominante, viver uma "vida santa" na contra-mão da história e não perder a esperança.
Em todos os tempos, grandes homens foram incompreendidos e perseguidos, de Cristo a São Francisco de Assis, de Martin Luther King a Gandhi e Mandela, mas o reino dos céus não vende ingressos.
No geral, Cruzada é um bom filme e fica melhor se assistido com sensibilidade aguçada. Não é o melhor que poderia ser, mas também não se perde tempo ao assistí-lo.
Título Original: Kingdom of Heaven
Lançamento: 2005 (EUA / Inglaterra / Espanha)
Direção: Ridley Scott
Roteiro: William Monahan
Música: Harry Gregson-Williams
Fotografia: John Mathieson
Com Orlando Bloom (Balian); Liam Neeson (Godfrey de Ibelin); Eva Green (Princesa Sibylla); Marton Csokas (Guy de Lusignan); Jeremy Irons (Tiberias); Edward Norton (Rei Baldwin); Ghassan Massoud (Saladin); Iain Glen (Ricardo Coração de Leão)