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Persista!


Texto: Helena Novais
Em 23.04.2012

Se eu tivesse que aconselhar um estudante de filosofia iniciante, diria: ouça tudo o que os professores disserem, preste atenção, mas assuma riscos, encontre seu próprio jeito de fazer as coisas e não se contente em ser um robô apenas repetindo o que os outros dizem sem acrescentar nada de particular. Mesmo que aconteçam tombos, tropeços, é lá na frente que a gente vê o resultado e que tudo começa a valer à pena. Lentamente vão se somando esforços, dedicação, empenho. Cada nova informação, cada novo aprendizado é uma conquista e não adianta ter pressa. Curta o percurso, cada nova descoberta, e esqueça disputas e egocentrismos de qualquer tipo. Sábio é quem mantém a serenidade e persiste.

No primeiro ano da graduação em Filosofia eu já andava às voltas com a vontade de me inscrever nos programas de pesquisa. Mas não sabia o que fazer e nem como fazer. Na verdade, não tinha ideia nenhuma, não distinguia pesquisa em Filosofia de pesquisa em qualquer área das ciências humanas. Foi tateando que apresentei um levantamento bibliográfica para a Prof. Marília Pisani. Era sobre movimentos sociais e ela, que na época não podia aceitar orientandos por ser nova na faculdade, indicou o Prof. Paulo Piva. Ele, lendo a papelada, entre um monte de pensadores citados, isolou meu interesse pelo Foucault e explicou que eu deveria focar num filósofo antes de escolher um problema tratado por ele. Indicou o Prof. Maurício Keinert para o caso de eu decidir trabalhar com Foucault.

E lá fui eu, procurar saber algo mais sobre Foucault antes de ir falar com o Prof. Maurício. Horas de biblioteca, procura aqui e ali. Me chamou a atenção o “As Palavras e as Coisa” e nem sei por qual motivo me ocorreu que poderia relacionar aquilo com o Kant. Nessa altura já estava no segundo ano e começava a estudar a crítica kantiana. Quando propus relacionar investigação arqueológica e transcendentalidade, o professor arregalou os olhos e aceitou na hora. Só bem depois que comecei a me dar conta do mato sem cachorro em que havia me metido.

Sabe Deus por que cargas d’água havia escolhido duas das obras mais complexas e mais importantes de qualquer época em Epistemologia. Ambas com quase quinhentas páginas. Na verdade, foi apenas por ingenuidade. O professor apostou na ideia, pois se tratava de um novo problema. Foucault, pouco antes de sua morte, deu sinais de que retomaria seus primeiros trabalhos e o projeto transcendental kantiano. Sua partida deixou o caminho aberto e muito a fazer.

Bem, muitas pedras rolaram a partir daqueles primeiros dias de pesquisa! A certa altura, entrei em pânico com a complexidade do trabalho. O texto do Foucault me soava como um treco esotérico. Cheio de figuras de linguagem, nada objetivo. Não entendia aquilo nem o suficiente para formular perguntas. Para ajudar, chegou uma fase em que não conseguia fixar atenção na aula sobre Kant. E para completar, a arqueologia focaultiana é genealógica, o que implica considerar Nietzsche. Então, haviam três filósofos envolvidos. Transferi o projeto para o TCC, não mais para a iniciação científica. Assim, teria mais tempo. O Prof. Maurício saiu da São Judas e tornou-se docente da USP. O projeto ficou parado, sem rumo. Como acabei fazendo iniciação científica em Rosa Luxemburgo não estava na obrigação de fazer o TCC, mas continuei lendo.

Foi só no último semestre do último ano de faculdade, que decidi retomar o projeto com a Prof. Monique Hulshof. Na verdade, foi só quando ela, após encerrar os estudos sobre Kant (um ano e meio estudando Kant com quatro horas de aula por semana e eu tinha me metido a relacionar Kant com Foucault!) e explicar Hegel, que senti que afinal começava a fazer sentido para mim o que o Foucault dizia. “Ok, agora acho que consigo escrever algo”. Ficou um trabalho embrionário, mas já era um começo e foi o suficiente para o TCC.

Este ano, sem frequentar aulas, me decidi a inscrevê-lo para apresentar no Encontro de Filosofia da USP. Foi aceito. Me propus a rever todo o projeto. Retomei Kant, refiz todo o trabalho, aprofundei as lacunas que sabia existirem, reescrevi. Não queria fazer feio na apresentação, ainda mais sob o nome da Prof. Monique que havia tido a boa vontade de aceitar meu trabalho de última hora. Também, para mim apresentar o trabalho representava um novo recomeço após tantas tempestades. Estudei muito e lá fui eu.

Após a apresentação, no dia 19 de abril, última quinta-feira, saí da USP no final da noite realmente empolgada. Senti e comprovei que nos últimos meses fiz progressos consideráveis. Maravilhoso discutir com estudantes de Foucault da USP e da UFRJ de igual para igual! Gente que está estudando o filósofo há até mais tempo do que eu. Algo como desembarcar num país desconhecido sabendo falar a língua local. Entendia o que estava sendo falado, podia debater. Havia uns trinta estudantes da sala e senti que contribuí para o conhecimento deles, assim como eles para o meu. Ouvi do Coordenador da Mesa que o meu é um trabalho ousado, pois pouca gente no Brasil está se dedicando a estudar o Foucault antigo. Também foi bem recebida a abordagem kantiana. Bem, por ingenuidade inicial acabei mesmo sendo ousada (Rs). Mas senti que estou no rumo certo. Foi uma confirmação!

E aí um filme passou pela minha cabeça... A primeira prova de Lógica, em 2009, com nota baixíssima e a luta que foi entender a Lógica aristotélica. Foram horas e horas, dias e dias fazendo tabelas de verdade, morrendo de medo de ser reprovada na disciplina. E os parabéns do Professor Thiago no final do ano por eu ter fechado o semestre com um 9,5. As dificuldades com o texto do Foucault, a fase ruim vivida em 2011, o desânimo em tantos momentos pelos motivos mais diversos, entre eles decifrar aulas que mais confundiam do que esclareciam, aturar manias de gente egocêntrica, contornar o “assim não pode” e “assim nem pensar” do filosofês, superar os métodos tortuosos ou a ausência de métodos... E trabalhar, pagar contas, sobreviver às intempéries... Tanta coisa, tantos momentos difíceis! Caminho prá lá de espinhoso!

Depois de anos de estudo ainda estou só começando. Mas ganhei novo fôlego. E há alguns dias estou com a impressão de que o ditado popular “Deus escreve certo por linhas tortas”, faz muito sentido... Após tanta “tortura”, enfim vejo luzes num túnel que não tem fim.
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