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Preconceito Linguístico: o que é, como se faz


 Incorporando as discussões e propostas mais recentes das ciências da linguagem e da educação, o autor reitera seu discurso em favor de uma educação linguística voltada para a inclusão social, pelo reconhecimento e pela valorização da diversidade cultural Brasileira.

Marcos Bagno é doutor em Filologia e Língua Portuguesa pela USP, professor do Instituto de Letras da Universidade de Brasília-UnB, escritor, poeta e tradutor.

“Se tanta gente continua a repetir que ‘português é difícil’ é porque o ensino tradicional da língua no Brasil não leva em conta o uso brasileiro do português. Um caso típico é o da regência verbal. O professor pode mandar o aluno copiar quinhentas mil vezes a frase: ‘Assisti ao filme’. Quando esse mesmo aluno puser o pé fora da sala de aula, ele vai dizer ao colega: ‘Ainda não assisti o filme do Zorro!’. Porque a gramática brasileira não sente a necessidade daquela proposição a, que era exigida na norma clássica literária, cem anos atrás, e que ainda está em vigor no português falado em Portugal, a dez mil quilômetros daqui! É um esforço árduo e inútil, um verdadeiro trabalho de Sísifo, tentar impor uma regra que não encontra justificativa na gramática intuitiva do falante.
(...)
Se tantas pessoas inteligentes e cultas continuam achando que ‘não sabem português’, ou que ‘português é muito difícil’ é porque o uso da língua foi transformado numa ‘ciência esotérica’, numa ‘doutrina cabalística’ que somente alguns ‘iluminados’ (os sumo sacerdotes da gramática normativa) conseguem dominar completamente. Eles continuam insistindo em nos fazer decorar coisas que ninguém mais usa (fósseis gramaticais!), e a nos convencer que só eles podem salvar a língua portuguesa da ‘decadência’ e da ‘corrupção’. Hoje em dia, aliás, vários deles estão fazendo sucesso na televisão, no rádio e em outros meios de comunicação, transformando essa suposta ‘dificuldade’ do português num produto de boa saída comercial. Para o já citado Arnaldo Niskier, trata-se de uma ‘saudável epidemia que tomou conta da imprensa brasileira’. Que é epidemia, concordo, mas quanto a ser ‘saudável’, tenho muitas e sérias dúvidas... É livro, é curso em DVD, é CD-ROM, é ‘manual de Redação do Jornal Tal’, é ‘consultório gramatical por telefone’... Eles juram que quem não souber conjugar o verbo apropinquar-se vai direto para o inferno! Na segunda parte deste livro tratarei de explicar por que não considero ‘saudável’ essa ‘epidemia’.
(...)
Minha heroína literária predileta, a boneca Emília, de Monteiro Lobato, não quis saber desse tipo de preconceito. Ao visitar, no País da Gramática, a prisão onde Dona Sintaxe mantinha enjaulados os “vícios da linguagem”, ela se revoltou ao ver atrás das grades o “Provincianismo”, isto é, os “vícios” da fala rural, do ‘caipira’ (p. 120)

‘Emília não achou que fosse caso de conservar na cadeia o pobre matuto. Alegou que ele também estava trabalhando na evolução da língua e soltou-o.

- Vá trabalhar, seu Jeca. Muita coisa que hoje esta senhora condena vai ser lei um dia. Foi você quem inventou o VOCÊ em vez do TU, e só isso quanto não vale? Estamos livres da complicação antiga do Tuturututu.’ ”

BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico: o que é, como se faz. 54ª ed. São Paulo: Loyola, 2011, pp. 52-55.