Quando criança, eu vivia às voltas com um sonho recorrente. Nele, estava sempre atrasada para algo, precisava pegar um transporte que passaria em dado momento e levaria a algum lugar. E sempre me dava conta de que estava descalça, precisava encontrar o calçado e pegar o transporte. E o tempo ia acabando e o transporte chegando... Despertava em meio à agitação da busca e o desespero da perda. E o sonho se repetia sempre. Mudavam os cenários, os personagens periféricos, mas a história era sempre a mesma. Onde eu deveria chegar, para que, por qual motivo, eu nunca soube. Apenas sentia que chegar era essencial, vital.
O fato é que toda a minha vida está marcada pela falta de sintonia entre o meu tempo e o tempo dos outros. Eu não me formei no colégio quando "deveria" ter me formado, não entrei na faculdade quando "deveria" ter entrado, não me casei nem tive filhos nos tempos em que casar e ter filhos acontece na vida da maior parte das pessoas. Hoje eu "deveria" ter filhos adultos e já estar sonhando com os netos. Nada disso. E muitas coisas que as pessoas fazem em dados momento de suas vida, eu também não fiz. Sempre havia um vendaval passando e me arrastando pra longe do tempo "certo". O calçado se perdia, meu trem passava.
Houve o tempo de sentir o peso das diferenças como mutilações e chegou o tempo de olhar para elas como o que realmente são: diferenças. Em si, diferente não quer dizer nem melhor nem pior, apenas diferente. O melhor ou pior é juízo de valor sujeito a variações. Valorizar ou desvalorizar são escolhas. E se por muito tempo eu joguei contra mim mesma, interpretando diferença como desvantagem, como falta, chegou o tempo de pensar minhas diferenças como oportunidades singulares.
Na verdade, esta não é uma decisão recente, nem mesmo é uma decisão. No final de 2011, quando percebi que meus planos haviam naufrago bem debaixo do meu nariz, sem que eu nem mesmo me desse conta do tempo que passava, instantaneamente me veio o pensamento de que eu não havia fracassado, apenas, novamente, o vendaval passava, o calçado se perdia e o trem passava... Compreendi que eu ganhava na mesma medida em que perdia. Há muitos trens, passando em muitos horários e levando a muitos lugares. Eu ganhava a oportunidade de trilhar um caminho que era só meu, com suas particularidades, suas angústias próprias, suas reflexões únicas, suas soluções inéditas a partir daquele vendaval que me envolvia, a mim.
As melhores oportunidades consistem em seguir o próprio caminho, no seu próprio tempo, do jeito nada comum que se distancia do "normal" justamente por não levar ao lugar "marcado", mas sim, sempre, a múltiplas possibilidades que se renovam. Não se entra duas vezes no mesmo rio, disse o sábio. E é justamente por estar fora do tempo e do padrão, que a oportunidade se reveste por uma couraça de experiências vividas e assimiladas que é única, moldada na medida certa para cada um. A gente não se dá conta, mas somos seres únicos no universo, outro a cada instante.
.