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Sons e Fúria







Permanecer atada a velhas pendências, principalmente quando se anseia pela aposentadoria de uma forma de vida que já não satisfaz, é muito ruim. Mas, verdade que passar um ano inteiro estudando Estética não é o pior que pode acontecer na vida de alguém. No meu caso tem acrescentado a vantagem de ser farol no caminho.





Quando me perco de mim, fico sem rumo e nada parece fazer sentido, o que acaba por me salvar é o passado. Olhando para trás procuro o que me fez feliz um dia, meu porto seguro. Ali relembro quem sou, o que ficou mal resolvido, o que merece ser revisto, retomado. Algo que sempre me tira da impotência, renova as forças e me faz retomar a caminhada é a minha mais antiga e mais forte paixão: a música.





Me lembro da menininha que eu um dia fui, que se trancava nos armários de casa com o radinho de pilha no ouvido, no último volume; da adolescente tímida que se trancava no quarto com o aparelho de som sempre no último volume. Sempre fui uma solitária acompanha pelo mais sublime, sons e fúria. Apaixonada pelo Iron Maiden, pelo Def Leppard, Queenryche, Rush, Heart, Helloween e a maior parte daquelas bandas de hard e heavy metal surgida nos anos 80, acompanhei os passos delas por anos.









Nunca fui adepta de festas e baladas de qualquer tipo, mas show de rock era celebração, epifania, momento de mergulhar no mais profundo da alma e viajar pelo infinito sem sair do lugar. A partir das músicas destas bandas aprendi inglês e notação musical por conta própria. Adorava cantar e só não fiz disso uma ocupação séria por conta da timidez, que não me deixava, e da falta de dinheiro. Naqueles dias montar uma banda de rock saía ainda mais caro do que atualmente. Instrumentos de qualidade precisavam ser importados, estúdios especializados eram inexistentes ou raros, até aulas de música saia caro para o meu salário de auxiliar de escritório. Daí que a música ficou mesmo como um refúgio e promessa de transcendência que sempre se cumpre. Ainda hoje faz a diferença. Se imersão em música não me renova para novas jornadas, nada mais é capaz.



E agora, olhando para o passado como despertar para o presente e ponte para o futuro, tenho percebido tudo diferente. Há sentidos e possibilidades que eu nunca havia percebido. Encarando a música como linguagem e com uma compreensão mais ampla de arte, a música assume uma nova dimensão. E eu que andei tão desanimada com as pessoas e com o mundo (que talento que as pessoas têm para ignorar suas melhores chances de superar-se, para transformar em vulgaridade tudo o que é mais sublime!) agora só começo a descobrir uma nova motivação: compreender o que me for possível da verdade oculta sob a linguagem musical.





Sempre me fascinaram os processos de produção de sons e silêncio por meio de sistemas orgânicos. Corpos que produzem ritmos, timbres, sobreposições e variações de sons e silêncios. Se por décadas meu interesse recaiu sobre música vocal, agora me volto para a percussão, para o completo envolvimento de cérebro e músculos na execução de composições, sistemas fechados e estruturados por linguagem específica e organizada. O que uma mente e um corpo escondem e revelam, do mais óbvio ao mais obscuro, neste processo podem falar do mais primitivamente essencial.





Enquanto o mundo em sua versão aparente não é mais do que máscaras e disfarces, há algo na linguagem que não disfarça a verdade e que talvez ainda possa revelar algo do que há de mais nobre na alma humana.








[Na foto, o "polvo" Mike Portnoy, ex-Dream Theater, e sua bateria Tama de três bumbos. Abaixo, Neil Peart, Rush.]





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