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Nietzsche, uma biografia (by Daniel Halévy)

“Estas últimas semanas, muito aprendi, realmente: li uma tradução francesa das leis de Manu. Essa obra absolutamente ariana, esse código sacerdotal fundamental dos Vedas, sobre o regime das castas e as tradições mais antigas; sempre fortemente sacerdotal, nunca pessimista, completa maravilhosamente minhas ideias sobre a religião. Compreendo que, ante qualquer outra grande legislação moral, tive uma impressão de imitação, diria mesmo de caricatura: sobretudo a egípcia. Platão mesmo me dá com frequência a impressão de ter sido, em pontos capitais, o bom aluno de um brâmane. Quanto aos judeus, é uma raça dos Tschandalas [pária, em sânscrito], que aprendeu dos seus senhores os princípios pelos quais o sacerdote consegue a dominação e organiza um povo...

“Não existe realidade suprassensível, e os idealistas sonham; não existe o mundo racional, e os racionalistas se enganam; não existe o mundo moral, e os moralistas nos enganam. O que existe, então, o mundo das aparências? Nem isso. Quem fala de aparência não deixa de subentender, por trás delas, alguma substância, e a palavra, com isso, engana quem a emprega. 'Com o mundo da verdade, abolimos o mundo da aparência.’ Não há nada, na realidade, que corresponda a essas noções de estabilidade, de permanência, que evoque em nós a palavra: ser. Em  última análise, nada existe.” – Daniel Halévy, sobre o pensamento de Nietzsche. (374)

“’É preciso meditar a obra’, dizia Michelet, ‘e depois escrever como uma chuva de tempestade’.” (374)

“Essa denúncia eterna do cristianismo, eu a escreverei em todas as paredes, enquanto encontrar paredes para escrever. Tenho à minha disposição letras que farão com que os cegos vejam. Considero o cristianismo o maior flagelo de todos, a perversão interior maior de todas, o grande instinto de vingança, entre todos, para o qual nenhum meio é bastante venenoso, secreto, subterrâneo, pequeno. O cristianismo, eu o considero a mancha vergonhosa, a mais indelével de todas, da humanidade” (Nietzsche, 375)

“O século XIX, diz Chesterton, está cheio de ideias cristãs que se tornam loucas: há disso em Nietzsche, Anticristo fiel ao Cristo e, como tal, tem o direito de trazer sobre a fronte o letreiro da Paixão: Ecce homo.” (380)

“Não obstante, a glória começa para Nietsche: Copenhague a vê nascer. Brandès escreve-lhe para dizer do grande sucesso das conferências das quais ele foi o tema. Foi tanto o público, que serão repetidas, primeiro, e depois publicadas. “O norueguês Strindberg”, acrescenta ele, “tornou-se seu fervoroso admirador”. Nietzsche comunica imediatamente a Peter Gast a notícia feliz. “Strindberg escreveu-me”,
diz ainda. “Pela primeira vez recebo uma carta onde percebo um acento histórico e mundial.” Histórico e mundial! (Welthistorisch), quem o será mais do que o nosso desconhecido? Em São Petersburgo, preparam-se para traduzir O Caso Wagner; em Paris, Taine procura e encontra um intérprete digno dele: Jean Bourdeau, redator do Débats e da Revue des Deux Mondes. “Por fim”, exclama Nietzsche, “abriu-se o grande canal do Panamá em direção à  França...” Seu antigo companheiro Deussen envia-lhe três mil francos, oferta de um desconhecido que quer participar dos custos de edição de suas obras. Meta von Salis-Marschlins, embora não sendo rica, oferece mil francos. Infelizmente, é tarde demais, nada deterá a queda já precipitada.” (381)

“A crise final se havia produzido na rua: Nietzsche, saindo de casa, viu um carroceiro que batia no seu cavalo; indignado, colocou-se entre o homem e o animal, envolvendo este com seus braços, beijando-lhe as ventas, impedindo que o tocassem. Os transeuntes juntaram-se, um guarda ia intervir. Tomado de uma comoção cerebral, Nietzsche caiu ao chão, O hoteleiro, que descera atraído pelo barulho, interveio. Nietzsche foi levado para seu quarto, mas atacado de um delírio que não cessara deste então.

Ó certezas da loucura, tão apaixonadamente chamadas! Sua primeira contribuição é um impulso de amor, tardia libertação dessa alma estrangulada. Com isso esclareceram-se os êxtases de São Silvestre: se Jesus e Dionísio se unem nele, é para levar a sua alma, para precipitá-la num oceano de amor.” (385)

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HALÉVY,  Daniel. Nietzsche, uma biografia. Rio de Janeiro: Campus, 1989.