Problema.
A elevação do tipo é perigosa para a sobrevivência da espécie. Por quê?
As raças fortes são raças pródigas. Encontramo-nos aqui diante de um problema de economia.
Nietzsche considera com uma atenção quase benévola essas tendências às quais sua razão se opõe, que são repulsivas aos seus gostos. Não lhe convém, pensa ele, negar às massas o direito de buscar suas verdades, de fundamentar suas crenças em suas necessidades vitais, de apaixonar-se por elas. Os senhores vivem dos seus trabalho [das massas], sua grandeza é suportada pela humildade delas. Privados delas, que seriam os senhores? Têm necessidade de sua presença e de sua felicidade mesma; devem prestar grande atenção ao destino das massas.
O problema consiste de tornar o homem tão utilizável quanto possível e aproximá-lo, o quanto se puder, da máquina que não se engana nunca: para isso, é preciso armá-lo das virtudes da máquina, é preciso ensiná-lo a suportar o tédio; a emprestar ao tédio um encanto superior... ; é preciso que os sentimentos agradáveis sejam rebaixados a uma posição mais inferior... A forma maquinal da existência, considerada como a mais nobre, a mais alta, deve adorar-se ela mesma...
Uma alta cultura não pode edificar-se senão sobre um terreno vasto [a massa], sobre uma mediocridade bem-comportada e fortemente consolidada...
O fim único, por muito tempo ainda, deve ser o apoucamento do homem: pois é preciso criar primeiro uma grande base sobre a qual se eleve a raça dos homens fortes...
O apoucamento do homem europeu é o grande processo que não poderíamos entravar: é preciso acelerá-lo ainda mais. É a força ativa que permite o advento de uma raça mais forte, de uma raça que terá em excesso essas qualidades mesmas que faltam à espécie apequenada (vontade, responsabilidade, certeza, faculdade de criar para si um objetivo).
Em tudo isso, nada de novo para nós. Os últimos planos de A Vontade de Poder são análogos aos últimos projetos de Assim Falou Zaratustra. Em uns e outros vemos surgir uma mesma concepção da sociedade humana, hierarquia de crenças e seres; reconhece-se igualmente neles a doutrina política secreta cujo texto Wagner tinha confiado a Nietzsche em 1869. Os homens não são capazes de mudar muito. Os diversos aspectos que apresentam correspondem a oscilações ocorridas à volta de um pólo, por vezes de dois pólos, que são mutáveis, e a velhice comporta, com frequência e facilmente, uma volta às eleições da juventude. Mas, Friedrich Nietzsche não teve a velhice, a curva de sua vida continua semelhante a um arco interrompido, suspenso no vazio. "
HALÉVY, Daniel. Nietzsche: uma biografia. Rio de Janeiro: Campus, 1989, pp. 356-357.
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São Paulo, 18 de agosto de 2023.
A anotação acima foi feita nos idos de 2017/2018 quando eu me preparava para os exames para o Mestrado da UFABC ou pouco após a admissão... Não me lembro ao certo... De qualquer forma a data da publicação (fornecida automaticamente pelo sistema) não corresponde à data de escrita... De lá para cá muitas águas rolaram... A dualidade forte/fraco para a qual Nietzsche chama a atenção no A Genealogia da Moral me fascinava e continua fascinando quanto às suas possibilidades. Ainda mais diante do conceito de "fatalismo russo" - o soldado russo, frente à situação extrema, com suas forças exauridas, se entrega à fatalidade ao enterrar-se na neve e abandonar-se à contingência enquanto recupera suas forças... Bela e trágica imagem! O forte se fez fraco para voltar a ser forte. Quem é forte, quem é fraco? Não é nada evidente.
Hoje, as grandes discussões filosóficas gravitam em torno da influência que o pensamento europeu exerceu em todo o mundo, a subordinação e o apagamento imposto a outras culturas. O supostamente superior se impôs ao mundo pela força da pólvora e hoje, diante da crise climática, não tem outro caminho que não seja a capitulação... Sim, a Natureza é sábia, a humanidade apenas tenta ser, muitos nem tentam..
O eurocentrismo hoje aparece menos como uma grande conquista da humanidade e mais como equívoco... Daí que, em todo o mundo, os subalternos estão se erguendo na "neve", com suas forças restabelecidas e prontos para lutar pela sobrevivência da espécie e das espécies deste planeta desgastado... Cabe aperfeiçoamentos à concepção nietzscheana de forte versus fraco.
"O apoucamento do homem europeu é o grande processo que não poderíamos entravar: é preciso acelerá-lo ainda mais." - Interessante a frase do Daniel Halévy, biógrafo do Nietzsche! Hoje a palavra "acelerar" invoca, obviamente o Aceleracionismo e toda a destruição que ele comporta... Um bom estudioso da obra de Nietzsche talvez se lembre de que o filósofo não considerava a sociedade europeia de sua época como superior, pelo contrário, ele a entendia como decadente, e a decadência é niilismo que leva à destruição...
"É a força ativa que permite o advento de uma raça mais forte, de uma raça que terá em excesso essas qualidades mesmas que faltam à espécie apequenada (vontade, responsabilidade, certeza, faculdade de criar para si um objetivo)". Aqui estamos exatamente no âmbito de pensamento do aceleracionista Nick Land e do pensamento político de direita no qual se baseia Steve Bannon e Donald Trump... A ordem é destruir, aniquilar o fraco... Mas, quem é o fraco, mesmo?
Considero um equívoco (mais um) atribuir a Nietzsche as consequência desejadas pelo aceleracionismo de direita, pois ele era contra a aniquilação e a favor da manutenção do conflito como caminho para aperfeiçoamento... Os direitistas poderia argumentar que o conflito passaria a se dar com as máquinas, o que é uma mentira. Os especialistas em AI são praticamente unânimes em afirmar que o cérebro humano não é capaz de acompanhar a progressão das AIs.
"Os homens não são capazes de mudar muito. Os diversos aspectos que apresentam correspondem a oscilações ocorridas à volta de um pólo, por vezes de dois pólos, que são mutáveis"... É o típico raciocínio binário que serve de base a estrutura de pensamento de origem europeia! E Nietzsche deixou como seu legado mais precioso o desafio de criação de outras epistemologias, que serviriam de base para a criação de uma outra ciência, uma gaia ciência... Não, Nietzsche não pode ser culpado pelas consequências desencadeadas pelo uso de dispositivos da ciência positivista que ele próprio renegava.
Com a crítica ao raciocínio binário, Derrida aceitou o desafio e partindo das considerações nietzscheanas sobre a Linguagem abriu o caminho que hoje está sendo seguido pelas filósofas (sim, principalmente as mulheres¹) que se dedicam à construção de outros mundos possíveis.
Hoje, mais do que nunca e cada vez mais, eu acredito que Nietzsche foi o maior de todos! É o pensamento dele, de Nietzsche, que está na origem das filosofias decoloniais! Já Nick Land... Ele levou Matrix muito a sério, pelo lado das máquinas, claro!