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2023, Capítulo I


Durante todo o ano de 2022 me senti na fila de um campo de extermínio... Eu havia me tornado "chefe" de uma pequena família que conta com um idoso e um doente crônico, e é isso o que governos extremistas costumam fazer: eliminam o que incomoda. Os fragilizados, claro... E note, nem digo "governo de extrema direta" ou de "extrema esquerda", pois a história mostra que radicalismo de qualquer lado é ruim, nocivo à população de modo geral. Viver sob regime reacionário é estar, o tempo todo, com uma ameaça óbvia ou velada sob a cabeça! Então, eu me sentia ameaçada e angustiada e estressada e fisicamente e mentalmente exausta... E, ao fim da apuração de resultados da eleição presidencial, me vi chorando de alívio.

Eu não teria votado em Lula em um cenário político digamos "normal". Lula já fez muito por este país. Ora, perfeito ele não é. Aliás, nada nem ninguém é perfeito. Mas, seus dois governo anteriores foram tempos de paz, de confiança no presente e no futuro. Eu, como brasileiros(as) em geral, estava acostumada a um país pacífico, governado por políticos que, pelo menos, se importavam em aparentar correção. E eu creio que Lula fazia mais do que meramente aparentar. Ele representava, e representa, o verdadeiro esforço aplicado a fazer melhor. Porém, Lula já havia dado o melhor exemplo e merecia viver uma outra etapa, com seu Instituto Lula e o que ele havia planejado para si. No entanto, diante do quadro que se apresentava em fins de 2022, só mesmo Lula seria capaz de livrar o país e os fragilizados de um mau maior.

Com a eleição de Lula, foi possível voltar a acreditar que eu sobreviveria, que a minha pequena família viveria dias melhores. E, sim, com a eleição de Lula até respirar se tornou mais fácil. O ambiente social foi arejado por novos ventos... Eu acreditava que o atendimento dos serviços público se tornaria mais humanizado, que as políticas sociais seriam desbloqueadas. E, no meu caso, isso se confirmou, não ainda sem mais alguns dias de agonia...

Em janeiro, depois de quase três anos de tentativas, estava eu, novamente, em uma agência da previdência social  para receber seguro saúde. Inacreditável e revoltante que depois de três décadas de contribuições previdenciárias alguém tenha que passar por humilhações na hora de receber aquilo para o qual pagou! Mas, era isso o que acontecia e eu me sentia impotente diante da falta de educação e de humanidade, do desinteresse, do descaso irresponsável e assassino de certos servidores públicos... Na ocasião, por pouco não tive uma crise de choro ali, na agência do Glicério. Choro de indignação, de raiva, de decepção com o ser humano, de impotência diante de gente que não está nem aí para o sofrimento alheio, que não faz o seu trabalho com um mínimo de cuidado e comprometimento... Esses se sentiram bem confortáveis em um governo de genocidas... Burocratas são seres em processo de desumanização! Para eles só a rotina importa... Lidar com gente desse tipo intoxicou bastante o meu espírito e me colocou diante de uma dilema: como filósofa é minha obrigação é evoluir sempre e transmitir o melhor de mim. O melhor de mim para um mundo que só me dá o pior? 

Por vezes, o que trás o problema também apresenta a resposta... O entorno da agência Glicério do INSS, em janeiro, me dava a impressão de estar dentro de um filme, o "Fuga de Nova York" de John Carpenter.. Muito mais negro e de uma densidade digna de pesadelo... Aliás, o próprio pesadelo! Muita gente vivendo nas ruas, em situações de privações e literalmente enlouquecendo de sofrimento... Senti medo, impotência e horror ao caminhar pelo entorno do Glicério... A junção das minhas angústias com o sofrimento daquelas pessoas me mostrou quem e o que merece o meu melhor. Há pessoas que precisam de ajuda e querem ajuda, enquanto outras agem no sentido de sustentar a estrutura que gera misérias... Quantos moradores de rua teriam direito à assistência previdenciária e ou assistencial? Pela Constituição Federal, todos(as)... E quantos têm suas vidas destruídas porque certos servidores não dão o seu melhor? É dos principais males desse país: quem está em situação de contar com as condições necessárias para transformar a realidade, age como se estivesse num passeio na floresta encantada, e não age para transformar o que não vai bem

Seja como for, devido a troca de governo ou não, em fevereiro, finalmente, surgiu uma médica de alma solidária que tomou para si o encargo de fazer uma visita domiciliar a um trabalhador doente em consequência das ações (ou falta) de um desgoverno assassino. Assim, foi resolvida a questão. 

E como eu sei que responsável pela solução dos problemas da minha família sou eu, e que sempre haverá alguém para dizer, implicitamente ou não, "vire-se com o seu problema", optei por uma guinada na vida acadêmica e fui para a Psicologia. Em abril eu seguia as aulas de Psicologia Clínica ministradas pelo professor Gabriel Binkowski, da USP, sob o título "Clinicas Psicanalíticas no Social e do Social: Genealogia, Problemática e Transmissão". Sem dúvida dos cursos mais proveitosos que eu já fiz!   Estudei Freud na graduação por dois anos. Voltei a estudar em disciplinas e curso de extensão - sempre vinculado à filosofia social, ou teoria crítica da sociedade - e não sabia que Freud defendeu a criação de clínica públicas de psicanálise, destinadas àqueles que não podem pagar pelos serviços de psicólogos. Como eu não sabia?! Pois, é... Eu não sabia!

Foi em um curso de Psicologia que me foi apresentado o livro "As Clínicas Públicas de Freud: psicanálise e justiça social", da Elisabeth Danto. Tremendo livro! Importantíssimo! E mais, tomei contato com psicólogos que estão envolvidos com a prática proposta por Freud, atendendo nas ruas aqueles que quer ser ouvidos por um profissional... Na verdade, estar em um curso de Psicologia e observar como os psicólogos usam textos filosóficos, para compreender a realidade em que seus paciente estão inseridos, fez com que eu me sentisse menos inútil como filósofa... Me trouxe um novo fôlego... Decidi voltar ao meu lugar, ou seja, à academia de Filosofia. Em junho  fui admitida como aluna especial da professora Marília Pisani, para Donna Haraway na disciplina "Tópicos Avançados de Filosofia Contemporânea" da UFABC... Infelizmente, não fui muito além. Precisei desistir por não conseguir estar presente nas aulas e não dar conta das leituras e tarefas necessárias... Uma pena! Mas, precisei priorizar a minha familiar e decidi tirar o resto do ano para colocar a vida em dia. Decisão que me custou a terceira oportunidade de ser admitida em um Doutorado... Talvez eu não tenha outra oportunidade, não sei... Na verdade, me sinto atropelada pelo tempo, pelas limitações e exigências que vêm com a maturidade.

Apesar de aos trancos e barranco, minhas investidas acadêmicas ajudaram a me atualizar quanto às discussões em andamento... No curso do professor Gabriel tive a felicidade de tomar contato, também, com Mark Fischer, filósofo britânico, falecido em 2017, por meio do seu "Realismo Capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?". Me identifiquei muito com Fisher. Nascemos no mesmo ano, 1968, vivemos o mesmo contexto cultural, fomos profundamente marcados pela música dos anos 80, ambos presos para sempre em estados de espírito gótico/melancólico evidente... E Fisher escreveu muito do que eu havia pensado e não escrevi, sobre ser necessário esvaziar as técnicas de seus sentidos originais, resignificá-las e redirecionar os usos... Curiosamente "Realismo Capitalista" foi lançado no Brasil com prefácio do professor Victor Ximenes Marques que participou da minha banca de defesa de Mestrado... Me lembro do professor Victor sugerindo que eu verificasse possíveis confluências entre transumanismo e aceleracionismo. Mas, ele não disse que naquele momento também estava trabalhando para a publicação de um livro relacionado ao tema, e eu acabei me perdendo em meio a tantas possibilidades de leitura. Eu devia ter procurado por dele depois da banca e ter perguntado sobre o que ler, mas não fiz e acabei sendo reorientada pelo acaso... Ler o prefácio de "Realismo Capitalista" me ajudou a corrigir o rumo, delimitando melhor as leituras. 

E, no curso da professora Marília, pude me sintonizar com o pensamento decolonial. Por consequência comecei a ler Derrida (sua crítica ao logocentrismo) e Gayatri Spivak (me interessa o uso que ela faz do método de Derrida, o desconstrucionismo). E  venho me aprofundando em Donna Haraway. Durante as aulas notei o quanto Nietzsche foi importante no desenvolvimento do decolonialismo, embora as filósofas feministas o ignorem.

Tanto em um curso quanto no outro as indicações bibliográficas foram fantásticas! Grande contribuição para que eu desse muitos passos adiante... 2023 foi o ano em que estendi no espaço sem sair do lugar... E estamos apenas no primeiro capítulo... 

[Foto: a filósofa indiana Gayatri Spivak]