Cena 1: um senhor diz que na época de sua infância as residências eram cuidadosamente arrumadas, enfeitadas, bem cuidadas. Toalhinhas de crochê cobrindo os moveis, cortinas com rendas e babados, tapetes felpudos, paredes coloridas, plantas e flores, quadros, objetos de arte. Hoje, não há nada disso. Predominam o clean, o minimalismo.
Cena 2: uma senhora diz que antigamente as mulheres eram obrigadas a ficar em casa. Não se sujeitavam a receber ordens de homens em locais de trabalho. Então, elas cuidadavam de suas residências, em seus mínimos detalhes, com máximo capricho.
Na cena 1 há uma constatação, pura e simples: a relação das pessoas com os espaços que habitam mudaram. Na cena 2 há tentativa de explicação da mudança. Explicação parcial e patriarcal.
A minha tentiva de explicação, que também é uma constatação, é outra. Noto o tipo de relação estabelecida com as telas e as posturas corporais. Corpos parados, estacionados. Mecânica dos olhos e dos dedos que lançam o pensamento à distância, para o espaço... "Movimento espacial" que, na verdade, é uma metáfora para associações cognitivas e processos racionais. A partir de um ponto exterior, na mente se abrem janelas associativas, interpretativas, imaginativas, fantasiosas, mediadas mais ou menos por julgamentos racionais limitados e falhos... Em meio a tais processos, se perde momentaneamente (em momentos mais longos ou não, mais frequentes ou menos) o contato com o que está posto no mundo físico, no espaço em que o corpo está inserido... Em síntese: a mente se desliga do que está ao redor, consequentemente não cuida do que está ao redor... A minha orientadora de Mestrado, a filósofa Luciana Zaterka, escreveu um artigo sobre a relação do transhumanismo com a ética nietzschiana, onde ela conclui que o primeiro é uma expressão do ascetismo nietzschiano (a ideia de se privilegiar a mente em detrimento do corpo). Sim! E é a ideia que ainda predomina no atual estágio da nossa história.
E, neste estágio, as explicações antigas disputam espaço com quaisquer outras explicações da realidade que venham a emergir... É a tal "guerra cultura"? Bem, em Filosofia se diz que é uma disputa epistemológica, o que pode ser um sinônimo... Nada de novo no fronte!
Dou um salto... Para as eleições municipais de 2024... Qual dos candidatos a Prefeito contempla explicações ampliadas do contexto atual (em outras palavras, a dimensão digital/virtual da sociedade, com suas projeções mentais e falhas cognitivas)? Pablo Marçal, certamente... Ele é o sujeito que usou a tecnologia para enriquecer. O pobre "empreendedor" quer o conhecimento, que Marçal supostamente possui e promete disponibilizar, para tornar-se um milionário, como ele. Marçal é o sujeito que faz uso pleno dos recursos comunicacionais para atingir seus objetivos. Diz o que a turma dele deseja ouvir, e faz isso muito melhor do que qualquer outro bolsonarista, porque faz com a máxima ousadia... É de anarcocapitalismo que se trata. E a ética não o constrange!
Quando Marçal publica laudo médico falso, e uma falsificação tão evidentemente mal feita, não se deve entender que ele teria sido estúpido o suficiente para acreditar que ninguém questionaria e descobriria a falsidade do "documento". Ele não tem a pretenção de sustentar a veracidade. O que ele está fazendo é acenar para o seu público-alvo para dizer "Olhem só como eu OUSO desafiar o sistema! EU sou o cadidato que veio para 'destruir a p* toda'!"... Não era isso o que dizia o Olavo?! A direita sintonizada (que não é apenas gado de manobra) entendeu o recado e apoia Marçal, enquanto a maior parte da esquerda continua entendendo que na direita são todos "burros" ou "manipulados"... Muitos são, mas nem todos.
Já se disse que o bolsonarismo sobreviverá sem aquele que lhe deu o nome... Quando Bolsonaro diz que "o prefeito foi indicado por 'superiores' ", há de se observar: 1) quem são os "superiores"? 2) Marçal desafia até os "superiores"! E porque ele faz isso? Ele usa a comunicação para arrebanhar a parcela "empreendedora" do povo e acredita que esse é o caminho.
O aceleracionismo de Nick Land prevê o caos e o defende. Evidentemente que no capitalismo o caos é máquina de moer, pronta a triturar os mais fragilizados, até mesmo pela deficiência cognitiva estimulada e pela rapidez dos fluxos digitais. A esquerda tende a entender que a direita é agente de morte, pois age de modo a privilegar os ricos e eliminar os pobres. Só os ricos teriam condições de erguer e manter sistemas de proteção em uma guerra de todos contra todos. Marçal é o pobre que enriqueceu e agora acena com a possibilidade de fundar "centros empresariais" nos bairros, com o objetivo de impulsionar as economias locais. O pobre empreendedor deseja isso... Ele sonha com oportunidades para enriquecer. Nele, Marçal pode encontrar o apoio de que precisa para desafiar tudo e todos... A esquerda teve essa mesma chance anos atrás e deixou passar, porque estava atolada em preconceitos e inadequações.
Mas, Marçal tem 53% de rejeição entre o eleitorado! Ele ainda não ajustou o personagem que ele interpreta para o público, de modo a cativar um número maior de apoiadores. Ele está na fase de usar os adversários para chamar a atenção por meio de escândalos, como ele mesmo já deixou claro ser sua intenção... Ele conseguirá passar para a próxima fase? Não da eleição, mas do amplo jogo político... Eis a grande dúvida... Quanto mais complexo o jogo, mais difícil dar conta de todos os pormenores. Seja como for, ao que se propõe, Marçal está muito à frente de Bolsonaro no quesito ousadia.
Talvez eu tenha "viajado" nas minhas elucubrações, ou não... Vamos ver o que futuro reserva, se o anarcocapitalismo avançará por aqui.