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Bring On The Night









O ano era 1986. Não me lembro em que contexto aconteceu o convite para o giro pela cidade, para uma “atualização cultural”... Aceitei, até porque eu iria de qualquer forma. Bring On The Night, o álbum duplo ao vivo do Sting havia sido lançado há pouco e eu queria comprá-lo. Fomos direto para a Galeria do Rock num sábado à tarde. Caminhamos pelos corredores movimentados, entramos em várias lojas. Fiquei encantada com a vitrine da Dr. Caligari, dedicada à música gótica... E acabei comprando Bring On The Night no finado Mappin. Muitos dos meus vinis foram vendidos em sebos, mas este álbum ainda está comigo. 





Naquela tarde, depois do Mappin fomos comer hamburguers no McDonald’s da Av. Ipiranga. Perambulamos pela cidade por horas e jantamos em uma cantina italiana na Rua Augusta. Voltamos para casa tarde, já quase no início da madrugada. E não era a primeira vez, nem foi a última. O tempo voava enquanto falávamos sobre tudo e sobre nada, desvendando o mundo.



Essa foi uma relação que durou por quase duas décadas. Nunca foi um namoro, um caso. Não. Era uma amizade platônica, uma irmandade, que teve toda a influência na pessoa que eu me tornei, nos meus gostos, interesses, no meu caráter e me salvou de muitas formas. Nos separamos pouco depois dele se formar em Filosofia. Tínhamos trinta e dois anos. Sim, temos a mesma idade.



Quando uma separação assim acontece, é porque a relação se desgastou lentamente a ponto da crise final ser inevitável. E não vou falar sobre relações que se desgastam lentamente. Não agora... Foi assim e só. Acho que começamos a nos separar quando ele começou a estudar Filosofia. Verdade que tentava de todas as maneiras me levar com ele para as aulas, tentava me convencer a fazer o mesmo curso. Mas, não era o meu momento. E muitas vezes me perguntei se tivesse cedido teríamos nos tornado duas pessoas intratáveis juntas ou se teríamos nos separado muito antes.



“Intratável” era palavra bastante adequada para o recém formado e arrogante filósofo, que achava saber tudo enquanto outros não sabiam nada. O que nos separou foi a arrogância que ele desenvolveu de alguma forma. E não vou falar sobre a arrogância dos filósofos que se comportam como superiores aos mortais comuns. Não agora... Foi assim e só. Mas, muito provavelmente ele tenha outra conclusão e apontaria alguma falha em mim. É sempre assim. A gente acha que está fazendo tudo certo, mas sempre o outro acha que não.



Hoje nossa história me veio à mente porque desde que nos separamos nunca mais conversei com alguém como conversava com ele... Éramos crianças descobrindo o mundo e vivendo uma história num tempo-espaço irrecuperável. Nos desentendemos uma única vez, a derradeira. Era meu melhor amigo, meu confidente, minha referência no mundo, minha “alma gêmea”. Mas, para ele não era assim, pelo menos não naqueles últimos dias.



E embora eu festeje a diversidade desta cidade, deste país e deste planeta, bem sei que a diversidade é o campo aberto das incompreensões e dos conflitos muitas vezes insolúveis. Para lidar com eles é preciso uma energia considerável. Paciência, força de vontade, muitas vezes subterfúgios, máscaras. Embora a vida entre o diverso seja desejável, a gente só descansa entre os nossos iguais, aqueles com quem podemos despir a alma, sem medo, sem incompreensões, sem enganos, sem máscaras, sem subterfúgio, sem esforços, naturalmente.




E uma coisa é conviver com o diferente em espaço social, outra é conviver com o diferente na vida doméstica. Imagine um evangélico e um ateu vivendo sob o mesmo teto; um consumista com um militante pela preservação ambiental... Quanto tempo eu conseguiria conviver com um fanático por futebol, sendo que eu não dou a mínima pra futebol? Ninguém aguenta interpretar papéis vinte e quatro horas por dia. Quanto tempo consigo conviver com alguém com quem não consigo conversar por cinco minutos? Anos, décadas... Por comodismo infeliz.



Mas este texto não é a retomada da minha fase “muro das lamentações”. Não estou chorando sobre o leite derramado nem me perguntando se a vida não poderia ter sido diferente. As coisas são como são e tudo é parte do que eu sou, alguém que sente falta daquele espaço privilegiado que envolve dois seres da mesma natureza.