O sonho de qualquer filósofo (que eu acho que se preza) é viver num Estado de esclarecimento. A figura da antiga Ágora grega, onde todos discutiam os destinos da cidade, é um modelo e uma utopia no horizonte. Mas, admito que não tenho notícias de que tais condições de livre busca pelo conhecimento tenham existido em outro lugar que não naquele espaço privilegiado, naquele momento privilegiado da história da humanidade. O normal é que haja uma elite que detenha o conhecimento e uma massa de ignorantes impressionáveis, influenciáveis, que se contenta com pão e circo.
Neste contexto, nascer do povo e tornar-se parte de uma elite de intelectuais é exceção à regra. Entenda-se: "elite intelectual" não implica necessariamente ter diploma, mas fazer-se herdeiro da herança cultural dos nossos antepassados e, como certa vez ouvi de um professor, tornar-se um gigante por "subir nos ombros de gigantes" e com autenticidade.
Cada vez mais acredito que a formação de homens diferenciados não é privilégio de academias e confrarias. Antes eles as formam, pois em diferentes civilizações são quem fazem a diferença. De qualquer maneira, os líderes sempre ganham status e reconhecimento. Não sei bem como fica esse status e reconhecimento num mundo como o nosso mega-informatizado, globalizado, contaminado pelo modo de viver da sociedade industrial em seu ápice. Numa palavra: caótico.
Sabe-se que o acúmulo de capital resultante do feudalismo criou as condições para a industrialização; que a industrialização trouxe a indústria cultural. No início do século XX, os alemães da Escola de Frankfurt se colocaram a estudar os estragos da indústria cultural... Suas conclusões até hoje apontam o beco sem saída em que a humanidade se meteu. Há quase cem anos eles apresentaram ao mundo seu diagnóstico sombrio. Tão sombrio que foram incapazes de apontar saídas.
Em meados deste ano, eu retomei meus estudos de filosofia estimulada pelos frankfurtianos, e dizia para um amigo que precisava urgentemente de uma nova paixão. Não me referia a uma pessoa, mas a um "algo" que renovasse as minhas esperanças, que me impulsionasse a sair da cama todas as manhãs com a garra e a vontade que eu tinha nos melhores anos da minha juventude. Os estudos exigiam, a vida exigia... E não sei bem como, mas de julho pra cá, talvez a partir das aulas que assisti na UFABC, diversas pontas soltas da minha vida passaram a convergir e a conspirar para que eu encontrasse o algo apaixonante. E encontrei.
Encontrei um caminho. E encontrei um músico no caminho (eu amo música!) que não faz música bonitinha. Pelo contrário, há de se ter uma certa força de vontade, ou disposição especial, para ouvir uma boa parte da sua obra ruidosa. É um homem simples, que faz um trabalho simples, mas alcançou um nível de sensibilidade e conhecimento invejáveis. Apesar de simples, e preso à condição humana permeada por necessidades do humano demasiado humano, como não poderia deixar de ser, ele encontrou uma forma de ser autônomo e autêntico. É um artista que não é parasita da arte e não coloca a própria alma à venda. Esse cara é a minha cara! E apesar de estar tão distante, me fez pensar que não estou sozinha no universo e que há uma resposta para o diagnóstico dos frankfurtianos ...
A questão é que a sociedade da informação disponibilizou técnicas e ferramentas ao grande público. Técnicas e ferramentas que permitem romper com antigos padrões de produção e distribuição artística... Ok, now we can!
Sim, a arte é a saída! E não há outra, pois é inerente ao humano a capacidade criativa e é na arte que o mais profundo da alma se manifesta. A arte faz oposição ao inumano das associações humanas... Os frankfurtianos diagnosticaram que tudo estava perdido quando notaram, também, que a arte tornava-se mercadoria, ou seja, que a via segura de contestação era assimilada pelo sistema, reproduzida em série e esvaziada de conteúdo. A informática permite que a arte seja resgatada, desmassificada e volte a ser autônoma, livrando-se do estigma de ser mercadoria. Há muito envolvido nisso... Muitas variáveis objetivas e subjetivas.
Fenriz, o músico no caminho, tem 42 anos. Em 1986 fundou uma banda chamada Darkthrone, a primeira a lançar um álbum de Black Metal na Noruega. Hoje conta com mais de duas dezenas de álbuns gravados, é compositor e multi-instrumentista. Mas não vive de música. Há anos é um funcionário do correio norueguês e passa seus dias registrando cartas e encomendas! E diz que Marx estava errado ao afirmar que o trabalho manual aliena o homem... Enquanto registra cartas ele também ouve música em fones de ouvido e sua mente conserva-se livre para ouvir, para não ouvir, para compor, refletir, sonhar, planejar... Ele construiu seu próprio estúdio de gravação e sua rede incomum de amigos. Recusa-se a fazer shows. Compõe boa parte da sua obra num estilo considerado como a mais extrema vertente do rock, o Black Metal, e a menos comercializável. Recusa-se a fazer parte do showbusiness; recusa-se a sair da cidade onde reside, a norueguesa Oslo, onde explora florestas e tem uma vida totalmente alternativa. É de uma inteligência, profundidade e sensibilidade cativantes.
Tal forma de vida, como artista e músico, implica romper com as categorias de produção; romper com estilos estabelecidos (ele se dá o direito de transitar entre estilos e projetos musicais); romper com as formas de comercialização (não faz shows, não excursiona, não promove culto a personalidade do "ídolo", portanto recusa-se a ser produto explorado pela indústria e não precisa dela). O que seria da indústria cultural se todo artista seguisse por caminho semelhante? A indústria cultural que é campo de manipulação das mentes e sustentáculo do sistema capitalista! Como não me apaixonar pelas possibilidades?!
Fenriz não é o único a romper com as estruturas, embora seja referência absoluta no rock extremo e um dos mais respeitados... E é uma grande ironia que justamente a arte mais agressiva, violenta, negativa, seja a que ofereça respostas! Mas não é tão surpreendente, pois nos seres humanos o bem e o mal coexistem e se alternam, sendo a arte um meio "inocente" de catarse.
No atual estágio de liberação para a autonomia da arte, há uma elite de artistas transgressores bem pouco evidente, quase anônima. Dificil dizer se no estado atual das coisas esta liberação se tornará um processo crescente que poderá levar a novos Estados esclarecidos. Certamente levará a novos estados de esclarecimento. Como disse o profeta, "a salvação é individual"... Se não é possível ter uma nova Ágora, que se libere o máximo de indivíduos.