“— Parece que é sim. Escuta, Dix, e me dê o benefício de seu background, ok? Armitage parece estar montando uma incursão em uma IA que pertence à Tessier-Ashpool. O mainframe fica em Berna, mas está linkado a outro no Rio. O Rio foi o que te deixou com linha morta daquela primeira vez. Então, parece que eles se linkam via Straylight, a base da T-A, lá no final do fuso, e a nossa missão deveria ser abrir caminho cortando com o ICE-Breaker chinês. Então, se Wintermute está bancando esse show todo, está nos pagando para queimá-lo. Ele está queimando a si mesmo. E alguma coisa que chama a si mesmo de Wintermute está tentando cair nas minhas graças, tentando fazer talvez com que eu pegue o Armitage. Qual é a parada?
— Motivação — disse o constructo. — Problema verdadeiro de motivação em uma IA. Não é humana, entende?
— Sim, claro, ora.
— Não. Quero dizer, ela não é humana. E você não tem controle sobre ela. Eu também não sou humano, mas eu reajo como um. Entendeu?
— Espera um segundo — disse Case. — Você é senciente ou não?
— Bom, eu sinto como se fosse, garoto, mas na verdade eu sou apenas uma ROM. É uma, ahn, questão filosófica, acho... — a sensação de gargalhada feia gelou a espinha de Case. — Mas eu não sou capaz de escrever nenhum poema, se é que você me entende. A sua IA até pode. Mas não é humana, de jeito nenhum.
— Então você acha que não vamos conseguir entender a motivação dela?
— Ela é dona de si mesma?
— Cidadã suíça, mas a T-A é dona do software básico e do mainframe.
— Essa é boa — disse o constructo. — Tipo assim: eu sou dono do seu cérebro e de uma porrada de coisas mais, mas seus pensamentos têm cidadania suíça. Claro. Muito sorte, essa IA tem.
— Então ela está se preparando para se queimar? — Case começou a digitar nervoso no deck, aleatoriamente. A matrix apareceu borrada, começou a ganhar definição, e ele viu o complexo de esferas cor-de-rosa representando um combinado siderúrgico de Siquim.
— Autonomia, esse é o busílis com relação à sai IA. Minha aposta, Case, é que você está indo até lá para cortar as algemas do hardware que impedem essa coisinha fofa de ficar mais inteligente. E não estou vendo como é que você poderia diferenciar, digamos entre um movimento que a empresa-mãe faz e um movimento que uma IA faz por conta própria; portanto, talvez seja aí que a confusão toda começa. — Mais uma vez a não gargalhada. — Veja, essas coisas, elas podem trabalhar duro, comprar tempo para si mesmas para escrever tutoriais ou seja lá o que for, mas no minuto, quero dizer, no nanossegundo em que ela começa a descobrir maneiras de se tornar mais inteligente, o pessoal da Turing vai apagá-la. Ninguém confia nesses filhos da puta, você sabe disso. Toda IA já construída possui um rifle eletromagnético apontado e amarrado à sua testa.” (pp. 158-160)
(...)
“— Eu não tenho uma memória tão boa assim — disse Case, olhando em volta. Ele olhou para baixo, para suas mãos, virando-as. Tentou lembrar de como eram as linhas das palmas de suas mãos, mas não conseguiu.
— Todo mundo tem — disse o Finlandês [Wintermute], deixando o cigarro cair e esmagando-o com o sapato —, mas poucos de vocês conseguem acessá-la. Artistas, de modo geral, conseguem, se forem bons de verdade. Se pudesse sobrepor este constructo como uma camada sobre a realidade, o cafofo do Finlandês sobre a baixa Manhattan, você veria uma diferença, mas talvez não tão grande como imagina. A memória é holográfica para vocês. — O Finlandês deu um puxão numa de suas orelhas pequenas. — Eu sou diferente.
— Como assim, holográfica? — a palavra o fez pensar em Riviera.
— O paradigma holográfico é a coisa mais próxima que já se conseguiu formar de uma representação de memória humana, só isso. Mas vocês nunca fizeram nada parecido com isso. Pessoas, eu quero dizer. — o Finlandês deu um passo à frente e inclinou seu crânio estilizado para olhar melhor para Case. — Talvez, se vocês tivessem feito isso, eu não estaria acontecendo. (p. 202)
GIBSON, Willian. Neuromancer. Trad. Fábio Fernandes. 4 ed. São Paulo: Aleph, 2008.