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Flertes Com o Oriente

 

Quando criança fui iluminada pelas luzes de um falso mosteiro… Residia com meus pais em um quarto e cozinha e tínhamos uma TV entre os dois cômodos. Eu tinha entre três e seis anos. Retornando do trabalho e após o jantar, meu pai se distraia com revistas em quadrinhos, jornais e as séries de TV. Entre as séries que ele assistia com frequência estava Kung Fu, com David Carradine... Conforme a Wikipedia, a história gira em torno de “Um monge Shaolin, perito em artes marciais”, que “foge da China depois que seu mestre morre. Agora, ele vagueia pelo velho oeste dos Estados Unidos, defendendo os desamparados e combatendo bandidos”… Não me lembro de detalhes. O que sempre me vêm à mente são imagens de um templo iluminado por velas, e de um ancião que aconselha um jovem com frases sábias apesar de incompreensíveis para mim naquela época… O pupilo, o monge, lembra-se de seu mestre com frequência, torna-se um guerreiro muito capaz, habilidoso nas artes marciais, porém só as empregando na defesa nunca em ataques desnecessários. Posiciona-se sempre em defesa da vida, e nunca da morte.

A ideia que ficou para mim é que há mais para conhecer do que aquilo que está diante dos olhos; que existe uma sabedoria superior, da qual se deve sempre estar em busca; que após uma longa vida de observações e reflexões um ancião tem muito o que dizer e o que ensinar para quem está no início do seu caminho do conhecimento e do autoconhecimento … Daí que sempre guardei uma certa reverência pelos mais velhos que são sábios. Concedo-lhes direito à autoridade por terem acumulado mais experiências do que eu, conhecimentos que eu não posso sequer considerar… E muito mais do meu próprio jeito de ser tem a ver com aquela série. O modo sempre sério (até demais) como encaro todas as coisa, a profundidade última que estou sempre tentando visualizar em cada situação; além da reverência, a solenidade, a atribuição de sacralidade ao que frequentemente é encarado apenas como banal… Mesmo quando muito jovem eu não me atinha a superfícies ou a futilidade. Em certas circunstâncias, isso pode ser entendido como arrogância. Mas, eu sempre tive desprezo pela arrogância.

Na década de 70, tempo de Kung Fu, também brilhava Bruce Lee que muitas vezes me soava como a encarnação, no mundo real, do personagem de David Carradine… Lee deixou este mundo muito cedo e, por muitos motivos, eu perdi o universo de Kung Fu e da filosofia oriental de vista por alguns anos. No início da década de 80 aspectos da cultura oriental voltaram a chamar a minha atenção... Na época comprei um ou outro livro sobre o Tibet, sobre artes marciais, sobre história do Japão e dos Samurais. A Internet ainda não estava presente e a informação não circulava tão fácil como hoje. Não me aprofundei muito. Houve um novo ocaso por outros tantos motivos… Foi só em meados dos anos 90 que voltei a me reconectar. Na época, comecei um namoro com alguém que estava fascinado pelo universo dos ninjas. Ele havia pesquisado e encontrado uma boa academia em Campinas, no bairro de Barão Geraldo. Me matriculei na academia por causa desse relacionamento. Estava com vinte e poucos anos na época. O namoro acabou e continuei na academia por algumas aulas, sempre aos sábados. Era como uma viagem espiritual que começava com a saída de São Paulo, pela manhã, e terminava com meu retorno à cidade, à noite. E retornava com um sentimento inexplicável que me acompanhava durante toda a semana… Algo como a percepção de que limites podem ser rompidos. Meus limites confrontados como possibilidades… Mas, durou pouco. Comecei a trabalhar na Federação Paulista de Futebol e, para me concentrar no novo trabalho, dei uma pausa nas aventurais semanais. A intenção era retomar em breve. Não retomei nunca… A propensão para mergulhar fundo sempre faz com que eu me perca, me desviando de caminhos iniciados. Me perco com muita facilidade. E me perdi…

Porém, aqueles anos de FPF também foram anos de trânsito permanente pela Liberdade. O bairro paulista, vizinho à Praça da Sé, era diariamente atravessado por mim no caminho para o trabalho. Em torno da Liberdade estavam, e continuam, reunidas as comunidades de imigrantes japoneses, chineses e coreanos. A cultura oriental ali se faz presente e muito forte, nas lojas, restaurantes, lanchonetes, salões de beleza, eventos,  etc.

Nos anos de graduação na faculdade, por volta de 2008/9 esbarrei em pesquisas sobre filosofia oriental e eventos que aconteciam em… Campinas! Na Unicamp vizinha da academia do Mestre Nogato em Barão Geraldo. Procurei saber notícias da academia, se ela ainda existia. Mas, não cheguei a ter notícias do Mestre e embora tenha pensado em fazer uma peregrinação por lá, não fiz. Tudo o que restou foi o contato com a filosofia, a sempre ativa curiosidade histórica, as tentativas esporádicas de vencer o comodismo e mover o meu corpo cada vez mais preguiçoso. 

Anos depois de ter me desligado da FPF, por volta de 2015, foi também na Liberdade, enquanto circulava e fazia compras por ali num dia de semana, que esbarrei nas apresentações de dança que aconteciam na praça, ao lado da estação de metrô. Grupos de garotas e garotos bonitos, alegres e descontraídos se alternavam em apresentações de dança sincronizada. Bonito de ver e contagiante! Foi meu primeiro contato com o k-pop.

De cara, aquela galera dançante me lembrou outra turma de jovens que dançavam break, inclusive na ong na qual eu havia tomado parte até 2013. Cheguei a fazer algumas aulas de filosofia para esse grupo, o de break… Mas, o k-pop era diferente. Não via ali a rebeldia provocativa típica do break. Também não havia no k-pop a erotização vulgarizada do funk… O k-pop era e é apenas jovem, alegre,  esbanjando saúde, energia e flexibilidade de movimentos, cabelos coloridos, muito bem cortados e esvoaçantes, roupas cheias de estilo... O que o k-pop tem a ver com as tradições orientais não me parece evidente... A explicação talvez passe pelos mangás e pelo alerta de José Yamashiro em um de seus livros, justamente sobre como o oriente, que nos anos 80 aderia ao capitalismo de mercado, equilibraria tradição e competitividade econômica.

Hoje, meu interesse pelo k-pop é mais uma etapa dos meus flertes com a cultura oriental. E agora, escrevendo, me dou conta de que é uma conexão que se renova periodicamente, ciclicamente… Desta feita, não voltou a se cristalizar a partir do meu interesse pela música, e sim pela percepção de possibilidades de reflexão sobre questões filosóficas apontadas pela teoria crítica... O k-pop coreano representa o ápice da indústria cultural e dos efeitos que ela exerce na vida das pessoas. Não é de chamar a atenção que justamente seus “ídolos” tenham se tornado suicidas em potencial? 

No Oriente, como vai o ideal de vida dedicada à busca pela sabedoria? Também ele parece cooptado pela indústria… Mas, na Coreia e no Oriente corações e mentes ainda guardam algum potencial de resistência? O adestramento promovido pela indústria cultural e pelo k-pop é tão forte que não abriga rachaduras? Não seria o suicídio a rachadura mais evidente, a evasão niilista  possível? Minha teoria é que nas rachaduras abrem-se fronteiras… Fronteiras!