Dia desses acordei de manhã, preparei meu café e fui tomá-lo no quintal, aproveitando o solzinho que despontava. Distraidamente, olhei pro lado e vi pequenas ramagens que cresciam entre o piso e o muro. Pareciam arvorezinha em miniatura... Num flash me veio a imagem de pessoinhas andando entre aquelas coisinhas verdes e por instantes me vi transportada para uma época remota da minha vida, época em que eu desenhava pessoinhas no papel, as coloria, recortava e criava para elas pequenas historinhas, pequenos universos... Eu as colocava dentro de pequenas casinhas, construídas por mim com pequenos pedaços de tijolos, madeiras e outros materiais. Ali aquelas pessoinhas “viviam”. Eu era o Deus que as fazia existir e ordenava seus dias. Na minha cabecinha infantil a vida delas era linda e perfeita. Eu devia ter uns 5, 6 anos, talvez menos... Naquela manhã, ao retornar do meu déjà vu me surgiu a questão: será que Deus também faz isso com a gente? Nos faz existir, nos dá um mundo de acordo com sua imaginação e fica observando de longe, acreditando que tudo é perfeito e que estamos felizes e satisfeitos?
No meu mais recente ataque de andarilhagem deixei a zona leste de São Paulo num fim de tarde rumo à USP. Depois do trauma que foi a minha última viagem até lá, via metrô linha amarela, decidi que atravessaria a cidade por cima da terra, e não por baixo, e sem pressa, afinal sem hora pra chegar ou voltar. E isso foi ontem... Bem, eu queria ter alma de poeta e escrever aqui uma grande ode a esta cidade que nunca dorme. Mas, se tenho, ela está submersa em um mar de lucidez, ou acho que está e acho que posso chamar isso de lucidez.
Quando ainda muito jovem passei a procurar por trabalho no centro da cidade. Duas coisas me deixaram chocada: os moradores de rua e a prostituição. Em qualquer época da minha vida São Paulo sempre esteve em obras aqui e ali. No momento ela toda me parece em obras. Prédios casas e vias públicas em construção. Metrô em expansão, viadutos, plataformas e monotrilho surgindo. Gente, muita gente, transitando para cá e para lá, como formiguinhas trabalhando para abastecer o formigueiro. Mas, certas coisas não mudam, entre elas os moradores de rua e a prostituição.
Posso dizer que a Cidade Universitária à noite também é linda! Em fim de inverno, as árvores se preparam para florir e o ambiente é mágico. É meu lugar preferido em São Paulo! Nunca fico muito tempo sem dar uma volta por lá. Ao redor, nas ruas, tudo adquire feições diferentes à noite. O Shopping Eldorado, tão feioso durante o dia, à noite parece um palácio! A Paulista ontem estava calma, serena como uma senhora cansada que repousava. As ruas do centro velho, vazias, também exibiam sua beleza por conta da arquitetura dos prédios antigos. Na Praça da Sé, homens, mulheres e crianças armavam suas frágeis barracas e se ajeitavam para passar a noite. Enquanto isso, meninas se colocavam em exposição nas calçadas, em busca de “clientes”. Não pude evitar de me perguntar o que aquelas pessoas sentem, como elas vivem. Elas sonham, pensam num futuro, numa luz no fim do túnel? O que pensam de si mesmas aquelas meninas que vendem seus corpos pelas esquinas? Por quantas humilhações elas não passam?! E quantas vezes não olhei para elas e não quis abraçá-las porque as sinto como minhas irmãs, mulheres como eu mesma!
Eu não tenho alma de Castro Alves... Não sei extrair poesia da escravidão, embora as luzes noturnas desta grande senzala que é São Paulo sejam lindas! Só consigo tentar ser uma filósofa que lê o mundo e não apenas livros; que conhece pessoas e suas condições objetivas de vida e não apenas teorias imaginadas por mentes criativas; que almeja soluções e não subterfúgios; e que se sabe pequena, muito pequena e impotente... Justamente por considerar as distâncias entre o texto, o emissário e o intérprete, me pergunto: Será que Deus nos "olha" de longe, seja lá Ele o que for, "vê" poesia e beleza em todos os lugares e "acredita" que somos todos felizes num mundo perfeito, como atores que se realizam ao interpretar seus personagens numa grande ópera universal?
São Paulo é bela, mas é feia...