Eu tinha 5 anos de idade. Brincava com uma amiguinha no quintal de casa, quando um homem se aproximou do portão, fez um gesto como que nos chamando, enquanto colocava à mostra o seu pênis.
Eu tinha 6 anos de idade. Numa noite chuvosa, minha mãe estava sentada na cama, embalando meu irmão recém-nascido. Ela chorava enquanto meu pai se arrumava para sair e encontra-se com a amante.
Eu tinha 7 anos de idade. Adorava minha professora da primeira série, quando decidiram que eu não era digna de estar na primeira série A e me separaram dela e da turma, com a qual eu já estava acostumada, para me colocar “no meu lugar”.
Eu tinha 12 anos de idade quando meus pais se divorciaram. Eu nunca mais vi meu pai. Minha mãe criou os dois filhos sozinha.
Eu tinha 16 anos de idade. Trabalhava num escritório de contabilidade e fui buscar um café na cozinha quando fui agarrada pelo meu patrão.
Dos 16 aos 32 anos tive que me preocupar em me desviar dos “apertos” em metrôs e ônibus. O que só acabou quando parei de tomar metrô e ônibus em horários de pico.
Aos 27 anos fui conhecer a família de um namorado e me vi hostilizada pela sobrinha dele, porque eu era "branquinha" (era uma família de negros e mau sabia a sobrinha que meu avô materno era negro, como boa parte da família da minha mãe).
Aos 45 anos decidi me desligar dos movimentos sociais depois de ouvir que “eu não me misturava” e ver usarem essa desculpa para me afastar de discussões importantes... A amorosidade freireana é linda, na teoria... Na prática sempre tem alguém, seja onde for, para entender as diferenças como fragilidades e usá-las na tentativa de pisotear os outros e agarrar os “privilégios” para si...
Durante toda a minha vida me vi lidando com o machismo de mulheres dentro de casa. Mulheres machistas são muito piores do que homens! “Isso não é coisa de mulher”… Elas são tóxicas! Elas intoxicam tudo e todos!
Acho difícil hoje imaginar uma mulher que não tenha seu histórico de mazelas do tipo… Estou na minha quinta década de vida, o que me deixa muito feliz. Ora, já vivi meio século! Sou uma sobrevivente! E sobrevivi porque, por natureza, não descanso até entender as minucias de todas as violências que me atingem…. Vou atrás, busco por informações, reflito, procuro compreender a dinâmica de todas as coisas que me afetam. Não se trata de fazer juízo de valor, de apontar culpados e inocentes. Não se trata de julgar fulano ou sicrano, e sim de entender... Porque quando eu entendendo, eu encontro a paz, me reposiciono diante da vida e trato de me colocar a salvo do que me faz mal irremediavelmente.
E existem vários níveis de análise... O que me choca, hoje, é observar como as discussões sobre raça e gênero estão contribuindo para a sedimentação de preconceitos sobre preconceitos... Não convém classificar uma violência como sendo de gênero, ou de raça, sem discutir NATUREZA HUMANA… Afinal, porque os seres humanos se agridem? Há violência de homens contra mulheres, e de homens contra homens; há violência de mulheres contra homens, e contra mulheres; há violência de brancos contra negros, de negros contra brancos, de brancos contra brancos e de negros contra negros; de ricos contra pobres, de ricos contra ricos e de pobres contra pobres… É a guerra de todos contra todos! É preciso discutir as origens mais elementares, mais essenciais da violência …
Hoje eu posso falar e repensar cada uma das violências que me atingiram (e há outras tantas) porque elas me constituem, porque eu sou maior do que cada uma delas, porque eu não seria quem sou se não tivesse sido atingida por elas… É preciso dominar a própria natureza para não nos reduzirmos a vítimas e mártires, eternamente caminhando no mesmo círculo vicioso.
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