Organizando minha biblioteca para enfrentar 2021
Gillian Flynn ganhou grande destaque no Brasil em 2014, ano do lançamento do filme Garota Exemplar, baseado em seu livro publicado dois anos antes e protagonizado por Rosamund Pike (Amy Dunne) e Ben Affleck (Nick Dunne). Acho que tomei contato com sua obra pouco antes disso, explorando o site da Intrínseca, que é uma das minha editoras favoritas de ficção.
“Um suspense psicológico intrincadamente construído, Garota Exemplar envolve o leitor no claustrofóbico mundo de um casamento arruinado. Um livro maravilhoso e assustador sobre como a superfície da normalidade e o interior sombrio se entrelaçam a tal ponto que se torna impossível separá-los.” (Orelha)
Conhecendo as traições do marido, Amy planeja um modo de vingar-se e reverter a situação a seu favor. Ela desaparece, não sem antes planejar, meticulosamente, que o marido se torne suspeito de tê-la assassinado, fazendo-o arrepender-se, dominando sua vontade e convertendo-o em um companheiro submisso ao seu controle. É um frio e amoral jogo de inteligência!
Flynn especializou-se em abordar dramas familiares a partir de temas tabu, aqueles que geralmente as pessoas preferem não discutir e manter submersos sob camadas e camadas de hipocrisia – e que eu adoro, não porque eu goste de ser desagradável e sim porque, como criança curiosa e bisbilhoteira, minha natureza é a de acender a luz na escuridão.
A autora também escreveu Lugares Escuros, publicado originalmente em 2009 e filmado em 2015, com Charlize Theron interpretando a protagonista.
“Libby Day quando viu a mãe e suas duas irmãs serem mortas num massacre brutal na fazenda família […] Escrito com primor, Lugares Escuros não só mostra como a memória é passível de falhas, mas também evidencia as mentiras que uma criança diz a si mesma para superar um trauma.” (Orelha)
Mas, meu livro preferido, entre os escritos por Flynn, é Objetos Cortantes que, na verdade é o seu primeiro – publicado em 2006 e que posteriormente virou série em oito capítulos). Não posso dizer que ele tenha me mpactado, pois na época eu já tinha me dado conta de muita coisa sobre o tema, mas é um livro corajoso.
“Camille Preaker é repórter em Chicago e, a pedido de seu editor-chefe, Frank Curry, retorna a sua pequena cidade natal para investigar um mistério envolvendo a morte de uma menina e o desaparecimento de outra. Curry acredita se tratar de um caso de assassinatos em série que, com uma cobertura perspicaz, daria prestígio e destaque ao jornal.
Hospedada na casa da família, Camille precisa reaprender a conviver com a mãe, o padrasto e a meia-irmã, além de lidar com as memórias difíceis de sua infância e adolescência, que tanto quis esquecer.” (Orelha)
Camille é apresentada como uma bonita jovem e talentosa jornalista que se encontra limitada a trabalhar em um pequeno e desprestigiado jornal local. Recém-saída de uma clínica psiquiátrica, ela tem hábitos autodestrutivos, ela se corta (daí o título), e para esconder o corpo marcado por cicatrizes, faça sol ou faça chuva ela se veste com blusas de mangas compridas e com gola alta... Mas, o que está “cortando” Camille e por quê? O conflito entre ela e a mãe aos pouco vai se evidenciando e se caracterizado como um caso do que hoje os psicólogos vêm chamando de “mãe narcisista”… A mãe que se considera a dona absoluta da verdade, que é egoísta, egocêntrica e sem empatia, que elege como sua vítima preferencial aquela filha que ela coloca em situação de inferioridade e subserviência se empenhando em minar seu amor próprio. Como os filhos(as) são naturalmente dependentes do amor de seus pais, o narcisismo materno é um problema sério que acaba por destruir o emocional das vítimas, as filhas. E a mãe de Camille tem duas filhas.
É mais fácil lidar com ausências do com que com certas presenças... O tipo de convício, e também de educação predominante na sociedade se pauta pela adesão aos padrões açucarados, enfeitados e mentirosos de vida. A família modelo do tipo “propaganda de margarina” é uma construção superficial, falsa e hipócrita que muitos adoram interpretar, mas que muitas vezes passa longe da realidade.
O fato é que toda família tem seus problemas, e como diria o Nietzsche (como eu iria esquecê-lo?) todos pagamos o preço de sermos filhos de nossos pais. Essa conclusão do filósofo não é um desrespeito à sacrossanta família cristã, mas antes um reconhecimento dos conflitos inerentes a todas e quaisquer relações humanas, em menor ou maior grau. Não existe vida sem conflito!
Nas relações entre homens e mulheres nem tudo é preto no branco e uma beleza. Há muitas áreas cinzentas e outras tantas de escuridão. E muitas vezes não é culpa de ninguém. Porém, ao contrário de se encarar os problemas de frente para entendê-los e buscar soluções, os desacertos são camuflados e emburrados para baixo de tapetes. O mesmo se pode dizer quanto às relações entre adultos e crianças. Mas, os danos ocultados se replicam.
É mais fácil evitar a dor... Mas, mais fácil para quem? E, realmente, é o mais fácil? Vidas são irremediavelmente destruídas porque os círculos viciosos formados por comportamentos nocivos e suas consequências não são encarados e, portanto, suas dinâmicas de funcionamento não são analisadas e desarticuladas. Tais círculos são constantes que determinam os dramas históricos. E não há discurso de autoajuda que dê jeito, pois o que está em jogo são as dinâmicas de construção das personalidades narcisistas, neuróticas, paranóicas, psicóticas e de suas vítimas. Cada ser humano é uma configuração ÚNICA de forças que reage da sua própria forma... E energias negativas são altamente contaminantes!
No fim, vítima de si mesma é toda humanidade, por seus autoenganos e adesões a ilusões frágeis.
[ Ops… Para além da questão central, Objetos Cortantes tem a passagem mais triste que eu já li, em toda a minha vida, sob exploração animal... A mãe de Camille é dona de um frigorífico e Camille faz uma visita ao alojamento dos animais… Desconcertantemente horrível e triste...]