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Cem Anos de Solidão






Outro mensageiro que acenava há tempos é Cem Anos de Solidão do colombiano Gabriel García Márquez. Se eu o tivesse lido antes, talvez tivesse me chocado menos com acontecimentos dos últimos anos.





Anos atrás procurei me aproximar de alguém para conversar principalmente sobre temas que observei neste livro: a circularidade da vida, as histórias que se repetem, coincidências contingentes ou necessárias. Outras pessoas, outros lugares, outro tempo, mas sempre o mesmo... As conversas não aconteceram, mas não faz mal, pois a vida encontrou outras formas de me responder... Descobri que Milan Kundera fala sobre isso em A Insustentável Leveza do Ser, que na obra de Nietzsche é quase uma ideia fixa e cristalizada no "eterno retorno". Curioso e instigante! Só perceptível para quem já passou por muitas fases.





Só agora, lendo este livro, me ocorreu que ao perceber a circularidade se torna possível identificar vértices... Ao identificá-los é possível tomá-los como aliados e não como inimigos... Aquilo que me dá medo e me persegue é sempre o mesmo camuflado por diferentes máscaras. E é o meu melhor amigo, para quem devo aprender a sorrir, acolhendo-o com alegria. Mas é necessário saber enxergá-lo antes de qualquer coisa... Nietzsche sabia das coisas!





Em Cem Anos de Solidão, além das revelações finais, o trecho a seguir me ganhou de forma especial:





"Na época em que preparava José Acádio para o seminário, já tinha feito uma recapitulação infinitesimal da vida da casa desde a fundação de Macondo e havia mudado completamente a opinião que tivera dos seus descendentes. Percebeu que o Coronel Aureliano Buendía não tinha perdido o afeto à família por causa do endurecimento da guerra, como ela acreditara antes, mas que nunca tinha amado ninguém, nem sequer a sua esposa Remédios ou as incontáveis mulheres de uma noite que haviam passado pela sua vida e muito menos ainda os seus filhos. Vislumbrou que não tinha feito tantas guerras por idealismo, como todo mundo pensava, nem tinha renunciado à vitória eminente por cansaço, como todo mundo pensava, mas que tinha ganho e perdido pelo mesmo motivo, por pura e pecaminosa soberba.Chegou à conclusão de que aquele filho por quem teria dado a vida era simplesmente um homem incapacitado para o amor."





(...)





"Aquela desvalorização da imagem do filho despertou de uma vez toda a compaixão que devia a ele. Amaranta, pelo contrário, cuja dureza de coração a espantava, cuja concentrada amargura a amargava, foi revelada no último exame como a mulher mais terna que jamais pudesse haver existido e compreendeu com uma penosa clarividência que as injustas torturas a que submetera Pietro Crespi não eram ditadas por uma vontade de vingança, como todo mundo pensava, nem o lento martírio com que frustrara a vida do Coronel Gerineldo Márquez tinha sido determinado pelo fel ruim de sua amargura, como todo mundo pensava, mas sim que ambas as ações tinham sido uma luta de morte entre um amor sem medidas e uma covardia invencível, e triunfara finalmente o medo irracional que Amaranta sempre tivera do seu próprio e atormentado coração. 






Foi por essa época que Úrsula começou a se referir a Rebeca, a evocá-la com um velho carinho exaltado por um arrependimento tardio e pela admiração repentina, tendo compreendido que somente a ela, Rebeca, a que nunca se alimentara de seu leite e sim da terra e da cal das paredes, a que não leva nas veias o sangue de seu sangue e sim o sangue desconhecido de desconhecidos cujos ossos continuavam chacoalhando no tumba, Rebeca, a do coração impaciente, a do ventre arrebatado, era a única que tinha tido a valentia sem freio que Úrsula desejara para a sua estirpe.

– Rebeca  – dizia, tateando as paredes  – que injustos nós fomos com você."









MARQUEZ, Gabriel Garcia. Cem Anos de Solidão. 41 ed. Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 239-241.