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Mensagem na Garrafa - Ano 38, Número 1









De uns tempo pra cá dei de frear o impulso de escrever por mera catarse. Tem sido até bem fácil. Do nada comecei a me pegar envolvida por antigas sensações e fui fechando todas as portas,  capturando as lembranças e me deixando  ficar sozinha com elas. Muda. 





Acho que isso começou numa tarde em que a Teka recusava deitar-se. Teimava em ficar sentadinha numa almofada, com o corpinho apoiado contra a parede, olhando pro nada... Sei que ela percebia relâmpagos e, às vezes, sombras repentinas, mas nunca vou saber ao certo o quanto ela ainda enxergava.  Ficava longos minutos com os olhinhos perdidos na distância, movendo a cabecinha levemente, como quem observava algo... Eu a observava. Me perguntava o que ela via, o que sentia... 





E dali em diante tanta vezes me peguei imersa nas sensações daquele dia em que intrigada pelas bolinhas coloridas que esvoaçavam ao meu redor, perguntei a você o que eram elas! "São fluídos que caem do céu", você respondeu... E eu nunca me esqueci que fluídos caem do ceú. Mesmo quando passei a não vê-los mais, ainda me lembrava do quanto são belos os fluídos coloridos que caem do céu... 





Será que ela também os via, a Teka? Será que os achava belos? Será que aqueles que nos acompanham nos primeiros dias são os mesmos que voltam a nos envolver nos últimos? Apenas sei que uma lembrança vem acompanhada de outras... 





Comecei a sentir saudades daquele tempo em que escrever ou não escrever nem era questão. Não era preciso exteriorizar o indefinível. Os momentos apenas brilhavam no mesmo instante em se apagavam, os dias nasciam e se dissolviam. É assim com nossos "eus", com a multidão de "eus" que nos habitam. Eles nascem enquanto desaparecem. Somos sempre uma coisa multifacetada e desconhecida pairando num corpo desconhecido, envoltos pela ilusão do conhecimento. 





E nesse mundo maluco o desconhecimento se disfarça de falsa segurança e todo mundo age como se conhecesse a si, o outro, o mundo. Passei a reconhecer que me desconheço e ver nisso alguma glória. 





Tenho me sentido mais segura na companhia das minha sensações recapturadas... Aquela sensação de solidão que me fazia caminhar pela cidade num buscar inconsciente da busca, hoje é abraçada por mim sem medo. A gente sai feito louco, procurando sem saber que procura, sem saber o que procura até que chega o momento fatídico de perceber que o procurado não existe no exterior. O essencial nos é íntimo, intrínseco. O companheiro mais constante, leal, fiel! Tão presente que a gente passa a senti-lo ausente.





Quando penso que é preciso sobreviver na superfície da exterioridade ainda me dá medo de estar só. Medo do desespero pelo cansaço de estar apenas com minha multidão de eus. Mas a gente se cansa de qualquer jeito. Se cansa da multidão de eus do outro, da multidão de eus de si... A gente parte. E que bom partir sem culpa, sabendo que a porta se manterá aberta até o fim dos dias! Partir é preciso; retornar, tão raro quanto mais belo.





Há tanto, tanto tempo você partiu... E eu demorei tanto para duvidar da objetividade a ponto de procurar fendas... Quanto tempo perdemos! Você ainda é a minha lembrança mais bonita, entre as poucas imaculadas, não corrompidas pelas decepções da vida... Bem poucas! Tão raro você! Eternas saudades de você...



(SF)





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