Não raro, as “melhores” famílias têm suas ovelhas negras. Fosse o Heavy Metal uma família respeitável, eu diria que o Black Metal é o filho problema. Criança esta que eu rejeitei no nascimento.
Me lembro das primeiras vezes que vi Venom, a banda precursora do estilo, em vídeo, na Woodstock. Foi rejeição instantânea, em parte por preconceitos meus, de fundo religioso. Fã de Heavy Metal, eu não me achava exatamente uma católica radical. Porém, a agressão visual e sonora do Venom não combinava com uma formação cristã, por mais remota que fosse.
Além da ostentação de símbolos pagãos, a defesa do satanismo e da violência, a musicalidade me era incompreensível. Vocais berrados, rasgados ou guturais, baterias à velocidade da luz, guitarras com timbre de serra elétrica... Me parecia uma coisa mórbida e de extremo mal gosto. Seria cômico se não me parecesse tão trágico. Não quis saber daquilo. Me interessava uma sonoridade mais tradicional ou com pegada progressiva, ou hard, ou no máximo o power ou trash. Gostava do Metallica dos primeiros anos, do Anthrax, do Exodus. Repudiava Venom, Slayer, Bathory... Não faziam sentido para mim.
Ouvi de longe, vagamente, rumores sobre a morte do Dead, o vocalista da norueguesa Mayhem, que suicidou-se em 1991. Mais vagamente ainda ouvi rumores sobre o assassinato do guitarrista da mesma banda, Euronymous, morto em 1993. Me lembro de ter pensado algo como “turma estranha essa, eles pregam a morte e agora estão se matando”... Filho problema esse Black Metal!
Há uns 2 ou 3 meses atrás, numa conversa de facebook com meu ateu preferido, um diretor da União Nacional dos Ateus (filósofo muito inteligente, culto e fã de Black Metal), surgiu a referência ao álbum Filosofem, de um certo Burzum, de um certo Varg Virkenes. A minha primeira reação foi um “Burzum, que isso?” seguido de um “Varg quem?”... Fui informada que o tal Varg é um músico/filósofo norueguês de Black Metal... "Ah, tah!" E o nome ressurgiu para mim no mês passado, quando Virkenes foi preso na França, sob suspeitas (aparentemente infundadas) de estar organizando um atentado terrorista. Um incidente horroroso que levou à prisão também sua esposa grávida, algemada diante dos três filhos pequenos na casa do casal, invadida pela polícia.
O tal músico/filósofo é uma das pessoas mais polêmicas do universo Metal. Tão odiado quanto temido, admirado e satirizado. Foi o responsável pela morte do guitarrista Euronymous, foi condenado à pena máxima norueguesa por assassinato e por colocar fogo em igrejas históricas. Vinte e um anos de prisão quando ele mesmo tinha apenas 21 anos! Cumpriu 16 anos de pena e foi colocado em liberdade condicional em 2009. Filho problema esse Black Metal! Mas, Virkenes tornou-se uma pessoa interessantíssima. É o Varg que aparece no belíssimo documentário Until The Light Take Us, músico, assassino confesso, ex-presidiário, escritor, pesquisador, pai de família, filósofo, lenda...
Há quem questione se Varg Virkenes não seria o Nietzsche do século XXI... Exageros à parte, dono de ideias inusitadas, incompreendido e polêmico ele é até além da conta, além de acusado de pensamento com tendências nazistas como foi o próprio Nietzsche... De qualquer forma, ele é ousado, abusado mesmo, e muito mais interessante do que a grande maioria dos filósofos que eu conheço. Seu nome acabou por trazer de volta à minha vida aquela criança rejeitada, agora adulta e cheia de histórias que reviram as minhas próprias histórias e lembranças.
Na primeira foto, Euronymou em Oslo, no interior da Helvete, a loja de sua propriedade, especializada em Black Metal e com as parede decoradas com posters e capas de discos, como a Woodstock, naqueles mesmos dias, era especializada em Heavy Metal. Na segunda foto, a Helvete do lado de fora. Qualquer semelhança não é mera coincidência... Como Nietzsche que diagnosticou a morte de Deus em seu tempo, também os músicos daquela época detectaram alguma coisa.
Atualizando (23.03.23), nos últimos anos Varg entrou em uma viagem problemática... Suas declarações em vídeos de youtube colocaram em evidência ideias racistas e xenófobas que causaram sua expulsão daquela plataforma. Ousou demais, se perdeu, e hoje sua fama de gênio criativo contrasta com a de ser humano definitivamente nocivo.