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ATO I, Ressignificar


Confesso que não sou uma pessoa muito normal. Sou tímida, de uma timidez pouco evidente (pois aprendi a fazer com que ela não me bloqueie, não me impeça de expressar, mesmo desajeitadamente, o que eu quero); sou introvertida e, como várias vezes ouvi ao longo da vida; “eu não me misturo” com facilidade; e não sou dada a arroubos de felicidade, sou meio melancólica por natureza (não por acaso grande admiradora da literatura romântica e gótica). O normal é que à primeira vista, me julguem “metida” ou antipática, meio intimidadora. Lembro de uma pessoa querida que certa vez me disse “eu achava que você era ‘metida’, porque você faz biquinho”, eu ri e falei “mas, é que eu sou ‘bicuda’ por natureza” e ela riu e devolveu um “é, hoje eu sei”.

As pessoas que me encantam e com quem eu acabo me dando muito bem, são aquelas que não se intimidam com as minhas esquisitices, pessoas espontâneas, de boa vontade, livres de preconceitos, que não estão empenhadas em enquadrar os outros em padrões estanques, por isso mesmo, permanecem de coração aberto, acolhendo a todos, amorosamente. Aliás, eu gostaria muito de conviver mais com pessoas assim para, quem sabe, me tornar uma delas. Minhas reservas têm muito a ver com insegurança, com a impressão de que o mundo é um lugar inóspito, selvagem e ameaçador, um espaço em que corro perigo, onde posso ferir sem querer, onde me machuco, onde me machucam. Eu me protejo. Quando machucada me afasto, me recolho, me fecho na minha concha, me tranco nela e escondo a chave. Medrosa, covarde? Sim e não, sempre prudente.

Estive na cidade de Porto Alegre duas vezes, no ano de 2012. Ambas a trabalho, ocasiões em que encontrei pessoas maravilhosas e delas – da cidade e das pessoas –, guardo lembranças carinhosas. Em Porto Alegre encontrei pessoas acolhedoras, algumas residentes e outras não. Na primeira vez que lá estive, encontrei uma mocinha de Goiânia com quem me identifiquei à primeira vista. Ela me falou da saudade da filhinha que havia deixado em casa com a família, da sua vida, do seu trabalho como educadora. Uma jovem de vinte e poucos anos e adorável! Andamos pela cidade, fizemos juntas as refeições, trabalhamos ao longo de quase uma semana. Ela tinha aquela facilidade de “se misturar” que eu nunca tive. Ela sentia a nossa diferença e meio que me colocou debaixo das próprias asas. Eu não me senti deslocada, porque ela estava ali. Voltamos a nos encontrar alguns meses mais tarde, em Brasília, quando nos falamos pouco, pois também naquela ocasião estávamos trabalhando em meio a um grupo grande, mas cheguei a ver sua filhinha, uma florzinha meiga e linda! E permanecemos conectadas pelo facebook.

E o facebook, essa ferramenta que propõe que se tenha um milhão de amigos, contraditoriamente tem em si o defeito de criar condições que distanciam as pessoas. Fica-se com a impressão de que o outro está ali, de que se está conectado com ele, de que se está “sabendo dele”… E isso é mesmo uma grande ilusão… Aquela mocinha, que na verdade era uma mulher, mãe de família, era também uma guerreira que adoeceu de um câncer e veio a falecer. E eu só fiquei sabendo da doença e da morte quando a família informou sobre o seu funeral. Silenciei por causa do choque e da tristeza... Tão jovem, tão querida, tão maravilhosa e eu nem suspeitei do sofrimento pelo qual ela passou.

E tem sido assim! Nas redes sociais vive-se em meio à ilusão de que as pessoas estão conectadas, próximas, e que a gente “sabe delas”… Mas, cada um passa por tantas agruras diárias e ninguém sabe, porque ninguém conta… E em meio às ilusões tem sempre alguém que faz julgamentos do tipo “ah, fulano tem tempo de ficar no facebook, mas não tem tempo para vir aqui ou ir ali, para fazer isso ou aquilo”… Bem, nunca falei dos choques diários que a gente tem quando cuida de alguém com Alzheimer durante quase três anos, do horror que é conviver com a decadência e a desagregação diária de um ser humano querido; nunca falei do medo que dá quando a mãe da gente é atropelada por uma moto na calçada de casa, quase fratura a coluna e fica dias e dias na cama, sem que a gente saiba se vai voltar a caminhar bem ou não; ou de quando um familiar tem que passar por um tratamento contra tuberculose; quando outro familiar desenvolve transtorno obsessivo compulsivo; eu nunca falei do que é trabalhar sozinha por duas décadas, sem conseguir planejar o que vai acontecer em curto e médio prazo; nunca falei do desafio que é lidar com a própria desmotivação, depressão, letargia… Nunca falei de tantas coisas, como outros também não falam dos seus desafios diários… E a opção por não falar não é culpa do facebook, mas de como se opta por usá-lo.

De qualquer forma, hoje tenho me permitido falar mais de mim do que em qualquer outra época, porque não é vergonha ter problemas, porque não mais vejo motivos para não falar deles, afinal eles constituem a minha história... Errado, acho eu, é ocupar os espaços para transmitir a imagem de vidas perfeitas, porque é mentira... Não há vidas sem dificuldades, sem conflitos, e é preciso falar dos próprios problemas para ressignificá-los, transformando as dificuldades em oportunidade de aprendizado e superação.