De uns tempos para cá, ando às voltas com a criação de conceitos ou com a atribuição de sentidos um tanto diferentes para conceitos já em circulação... Vou adotar aqui "texto seminal" como aquele que é o mais importante de um escritor, aquele que apresenta a essência primeira de uma obra mais ampla... E adoto considerando que, no momento, não consigo entender bem o que outros querem dizer com tal expressão, apenas sei o que eu quero dizer.
O que seria, então, a tal "essência primeira" de um texto seminal? Aquele que diz quem é o autor, o que contribuiu para a formação dele como ser humano pensador e criador. Invariavelmente sua história de vida familiar vem antes da formação escolar, seus conflitos pessoais caminham lado a lado com suas fontes culturais, aquilo que o motiva e o move estão em paralelo com suas preferências, escolhas e conclusões.
É um grande erro acreditar ser possível separar história de vida, caráter e produção artística ou intelectual. Estas são partes indissociáveis de uma relação íntima e complexa. Trata-se de uma compreensão das mais importantes para um filósofo! Um pensador não é um gênio que capta ideias isentas no vento por magia...
Um exemplo é o texto Corpos Capazes e Espécies Companheiras, da estadunidense Donna Haraway, publicado no Brasil pela editora Ubu, em 2022, como sexto capítulo do livro Quando As Espécies se Encontram. Nele Haraway fala sobre sua relação com pai e mãe, em especial sobre como seu pai influenciou seu próprio trabalho acadêmico. O pai de Haraway, Frank Outten Haraway, foi um cronista esportivo e um ciborgue.
"Quando tinha dezesseis meses de idade, meu pai caiu e machucou o quadril. A tuberculose se instalou. Ela se atenuou só para voltar com força total em 1921, quando ele escorregou em um piso de madeira oleado. A tuberculose alojou-se na parte superior da perna, no joelho e nos ossos do quadril em um período em que não havia tratamento." (p. 232)
Frank Haraway viveu a vida com a ajuda de muletas e cadeiras de rodas. Mas, viveu muito bem! Além de cronista também foi um esportista dedicado. Casou-se, constituiu família, viveu uma longa vida movimentado-se com agilidade, como conta sua filha, Donna, neste texto... E Donna Haraway se tornou bióloga e filósofa internacionalmente reconhecida por seu Manifesto Ciborgue e por sua compreensão profunda das íntimas relações entre humanos e tudo aquilo que não é humano, seja biológico ou tecnológico.
Donna vem espantando o mundo há décadas ao dizer o óbvio, que ninguém vê, mas ela enxerga pois aprendeu a perceber tudo diferente devido à convivência com o pai... E não só devido à movimentação diferenciada dele como, também, a percepção aguçada sobre a natureza das dinâmicas dos jogos... Donna fala sobre as interrelações que se estabelecem entre as espécies e as coisas, sobre como tudo o que existe se transforma a partir de interações, ou não... Donna também menciona sua mãe e como ela teria se tornado incapaz de participar da interlocução entre pai e filha devido a um modo de pensar viciado pelas crenças religiosas...
Confesso que chorei quando li Corpos Capazes e Espécies Companheiras... E choro novamente quando me lembro dele... E por muitos motivos... Nos textos e nos procedimentos acadêmicos predominam uma impessoalidade que tendem a desvalorizar as experiências pessoais. E isso é um erro tão grande... Isso tira da Filosofia a possibilidade de conforto, que ela poderia tão bem proporcionar... A Filosofia é busca por respostas para aquilo que angustia, ou deveria ser... Eu, nos meus anos de estudo, nunca senti que fosse. Por necessidade, aprendi a fazer com que fosse para mim e clandestinamente... Explico: a filosofia de Nietzsche foi meu consolo desde sempre, mas escrever de modo pessoal na academia é proibido... É preciso soar impessoal, mesmo não sendo, ou principalmente quando não sendo... Soar "técnico", frio e impessoal quando o universo parece estar desabando é uma fraude e é penoso... Hoje vejo, claramente, que a pensadora mais importante da atualidade (sim, ela é, sem dúvida!) partiu do pessoal e construiu uma obra que é tudo de que a Humanidade precisa como guia para o futuro.
Há futuros possíveis, sim, se ninguém apertar o "botão" do fim do mundo e mesmo que se tenha que ser "vida feroz", conceito da jornalista Eliane Brum (não por acaso uma admiradora do trabalho da Donna Haraway) para o que ela entende como "viver sem esperanças"... Nesta construção tão trabalhosa, tão desafiadora, não há caminhos possíveis que não partam das histórias de vida, da construção de filosofias pessoais... Só posso "vir a ser" a partir do que "eu sou", e como, se não me conheço? É preciso espalhar conhecimentos elementares para minimizar enganos e promover autonomia criativa... Encarar os dramas familiares é indispensável, assim como ter a coragem para curar as próprias feridas e praticar a deserção de tudo o que não acrescenta nada de bom, e criar o novo por mais improvável que seja...
Foto: Donna Haraway - https://images.app.goo.gl/vcWX89t9gZxgBJL37