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Entre Atos







Estava eu no meu leggin e camiseta, esticada na cadeirinha de praia armada no quintal. Tinha o notebook no colo, os fones no ouvido e assistia ao A Menina que Brincava Com Fogo, a versão sueca para o segundo volume da obra de Stieg Larsson, quando algo me assustou. Com o sobressalto, meu cineminha portátil quase foi parar no chão ao mesmo tempo em que uma tempestade começava a cair. Recolhi as tralhas mais do que às presas e corri para dentro de casa. Ao mesmo tempo, me dava conta de que o que havia me assustado fora uma gotona de chuva que caiu na minha meia. 





A tal frente fria chegou sem que eu percebesse e se instalou. Há quatro dias chove ininterruptamente em São Paulo. O solzinho pálido e frio que vinha envolvendo a cidade foi coberto por nuvens densas. A temperatura caiu. Quem anda gostando desse revertério são minhas violetas. Severine, Lucretia e Juliete estão visosas, carnudas e com flores exuberantes. O mesmo não posso dizer da Maria. A roseira está acabrunhada e recusa suas flores. Ela não gosta de frio e já deixou claro que não oferece flores para qualquer um. Às vezes, me vejo nela, em seus caprichos e “nove-horas”. Com a diferença que ela parece mais sábia para identificar quem merece flores ou não, quesito em que eu sou, e sempre fui, completamente incompetente. 





Pela janela olho a rua vazia e molhada. Me vejo calçando botas plásticas, vestindo uma roupa fofinha e quentinha sob uma capa de chuva com capuz e saindo de mãos vazias. Entro e saio de lojas sem me importar com o rastro d’água que deixo por onde passo. Ando pelas calçadas ou pelo meio da rua dessa cidade-dormitório semiabandonada em feriado prolongado. Observo os prédios altos com seus vidros molhados reluzentes; sento-me em algum café e fico a observar a água que cai do céu lá fora. Saio para a calçada, vago sem direção... Observo os prédios altos com seus vidros molhados reluzentes; entro em bancas de jornal e livraria sem ousar tocar a santidade dos livros, corrompê-los com as águas da chuva teimosa. Vago sem direção, observando os prédios altos com seus vidros molhados reluzentes... Me movo, pois existo. 





Imagino, mas não faço nada disso... Talvez porque eu não tenha botas plásticas nem capa de chuva, talvez porque os prédios altos estão distantes... Certamente porque estou com preguiça... Mas sinto: introspecção, quietude, silêncio, solidão, chuva, frio... Nada disso é tristeza... Antes harmonia comigo mesma. O Deus-natureza me deu uma trégua. A paz está na ausência de desejos... Meus melhores momentos são os de viajante que transita ou aqueles em que hiberno ... Me sinto bem com meus filmes, com meus textos, com minhas plantinhas, com minha janela... O solzinho pálido provavelmente voltará. 








[[[ Será que há alguém nesse país que, por mais inteligência que queira aparentar, vez ou outra não se sinta incomodado com a ditadora da ortografia/gramática coronelíssima? Vou na cola da Clarice Lispector: as vírgulas são minha respiração, respiro onde quiser; os hífens são meus momentos, os “erros” meus instantes. Viva meus momentos e meus instantes!!! Língua é língua viva. ]]]





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