E lá se foi Count Zero... Terminei.
Não sei dizer quando começou a onda de trilogias na literatura (como se já não bastasse no cinema), mas acho pouco provável que ao publicar Neuromancer, há vinte e cinco anos, William Gibson tivesse em mente escrever continuações. Frequentemente, elas são escritas mais por razões mercadológicas do que propriamente artísticas.
De qualquer forma, Neuromancer e Count Zero são obras muito diferentes em suas estruturas. A primeira se constitui de narração contínua, que se apoia em sobreposições de estado de consciência, alternância de subjetividades focadas em espaços objetivos e virtuais. Desmembramentos e associações como eu nunca havia lido... Na época de sua publicação, espaço virtual era uma coisa bem pouco compreensível para os não iniciados em informática. Mesmo hoje, em época de inclusão digital mais avançada, correlações e implicações não são tão óbvias. Consequentemente, Neuromancer não é um texto fácil e deixa margem para especulações filosóficas infinitas.
Por sua vez, o texto de Count Zero pouco uso faz de espaços mentais e não é composto por narração contínua. São três histórias que transcorrem em paralelo e antes se bifurcam com a história contada no primeiro livro, para só depois cruzarem-se entre si e lentamente, aos poucos. Em Count Zero, o autor acentua possibilidades da Biologia e da Medicina. Destaca os implantes corporais e intervenções cirúrgicas, que poderiam reabilitar corpos dilacerados, expandir e projetar consciências, prolongando vidas, além da autonomia de Inteligências Artificiais para unir-se e separar-se. Porém, deixa em aberto um questionamento bastante atual: mentes humanas podem ser traduzidas em números e perpetuar-se por meio de estruturas virtuais, nos moldes das Inteligências Artificiais? É a perspectiva cartesiana do homem-máquina em nova roupagem, agora estudada pela mais avançada Neurociência.
E Count Zero tem uma dimensão social bem acentuada. Coloca em questão a evolução das grandes corporações e as consequências das transformações tecnológicas e do poder de quem as controla, desta feita enfocando a vida individual e a convivência em grupos humanos, as relações pessoais e interpessoais.
Quem tem acesso à tecnologia de ponta, obviamente também tem acesso aos meios para transformar sua própria existência. Como pouco se pode prever dos efeitos de novas tecnologias na alma humana (e o que se pode prever normalmente recebe pouca atenção), aberrações acabam sendo inevitáveis.
Os dois livros têm em comum o fato de Gibson usá-los para jogar luz sobre possibilidades que não são vagas possibilidades. O autor trabalha com a imaginação bem delimitada pelo atual contexto de pesquisas tecnológicas. O mundo que ele visualiza, embora considerado de ficção científica, está ali, num dobrar de esquina e, em boa parte, é aqui e agora. Este parece ser o tempo em que presente e futuro são um mesmo, mas que poucos se deram conta disso.
Foto: William Gibson
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