Nietzsche:
“Pobre, alegre e independente! – essas qualidades podem estar reunidas numa única pessoa; pobre alegre e escravo! – isso também é possível – e eu não poderia dizer nada de melhor aos operários escravos da fábricas: supondo que isso não lhes pareça em geral como uma vergonha de serem utilizados, quando isso ocorre, como o parafuso de uma máquina e de algum modo como tapa-buraco do espírito inventivo dos homens.
Com os diabos acreditar que, por um salário mais elevado, o que há de essencial em sua desgraça, isto é, a sua subserviência impessoal, pudesse ser supresso! Com os diabos deixar-se convencer que, por um aumento dessa impessoalidade no meio das engrenagens de uma nova sociedade, a vergonha do escravo pudesse ser transformada em virtude! Com os diabos ter um preço mediante o qual se deixa de ser uma pessoa para passar a ser uma engrenagem!
Vocês são cúmplices da loucura atual das nações que não pensam senão em produzir muito e em enriquecer o mais possível? Sua tarefa seria de lhes apresentar outro abatimento, de lhes mostrar que grandes somas de valor interior são dissipadas para um objetivo tão exterior! Mas onde está seu valor interior, se vocês não sabem mais o que é respirar livremente? Se mal sabem se possuir vocês mesmos? Se estão cansados demais de vocês mesmos, como uma bebida que perdeu seu frescor? Se prestam atenção aos jornais e espiam seu vizinho rico, devorados de inveja ao ver a subida e a queda rápida do poder, do dinheiro e das opiniões? Se não têm mais fé na filosofia esfarrapada, na liberdade de espírito do homem sem necessidades? Se a pobreza voluntária e idílica, a ausência de profissão e o celibato, que deveriam convir perfeitamente aos mais intelectuais dentre vocês, se tornaram objeto de zombaria?
Em compensação, a flauta socialista dos apanhadores de ratos lhes ressoa sempre aos ouvidos – esses apanhadores de ratos que querem inflamá-los em esperanças absurdas! Que lhes dizem de estar prontos e nada mais, prontos de hoje para amanhã, de modo que vocês esperam algo de fora, esperam sem cessar vivendo de restos como sempre – até que esta espera se transforma em fome e sede, em febre e loucura, e que se ergue finalmente, em todo o seu esplendor, o dia da besta triunfante! – Pelo contrário, cada um deveria pensar por si: “Antes emigrar, para procurar tornar-se senhor em regiões selvagens e intactas do mundo e sobretudo para me tornar senhor de mim mesmo; mudar de lugar mal um sinal de escravidão contra mim se manifeste; não evitar a aventura e a guerra e, no pior dos casos, estar pronto para morrer: contanto que não seja necessário suportar mais essa indecente servidão para não me tornar venenoso e conspirador!”
Este é o estado de espírito que conviria ter: os operários da Europa deveriam se considerar doravante como uma verdadeira impossibilidade como classe e não como alto de duramente condicionado e impropriamente organizado; deveriam suscitar uma época de grande exame para fora da colméia européia, como nunca antes vista, e protestar por meio deste ato de liberdade de estabelecimento um ato de grande estilo contra a máquina, o capital e a alternativa que hoje os ameaça; devem escolher entre ser escravo do Estado ou escravo de um partido revolucionário.
Pudesse a Europa livrar-se de um quarto de seus habitantes! Seria um alívio para ela e para eles. Somente ao longe, nos empreendimentos dos colonos partindo aos enxames para a aventura, se poderia finalmente reconhecer quanto de bom e de equidade, quanta sã desconfiança a mãe Europa inculcou em seus filhos – nesses filhos que não podiam mais suportar viver ao lado dela, essa velha mulher embrutecida, e que corriam o risco de se tornarem melancólicos, irritadiços e gozadores como ela.
[...]
Assim é que um ar mais puro sopraria sobre a velha Europa [...] E que importa se então nos faltará um pouco de “braços” para o trabalho! Talvez nos lembraríamos então que nos habituamos a numerosas necessidades somente desde que se tornou fácil satisfazê-las – bastaria esquecer algumas necessidades! [...]”
NIETZSCHE, Friedrich. Aurora. São Paulo: Escala, 2008, pp. 193-195.
Observações:
1) Nietzsche diz “Pelo contrário, cada um deveria pensar por si:”... em seguida diz como todos deveriam pensar igual (Rs).
2) Mas, pensar por si, é um dos pilares, o principal, dos processos de esclarecimento.
3) Os movimentos populacionais são constantes ao longo da história. Partir ao menor risco de ser subjulgado significa partir constantemente, não superando a tendência humana de subjulgar ou de submeter-se. Me parece que em Nietzsche isto é coerente, pois sem conflito não há movimento e vida é movimento.
4) Nietzsche me parece muito próximo dos anarquistas, pelos quais eu, pessoalmente, tenho grande simpatia.