Meses atrás, estive em Belo Horizonte com um grupo de educadores da Recid. Era um encontro macroregional, com representantes de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo. Como sempre ocorre em eventos do tipo, havia um tempo reservado para estudos e, desta vez, o tema escolhido era "consciência crítica". Depois de abordar Hegel, Marx, Nietzsche, Freud e Foucault, entre outros, o coordenador propôs uma dinâmica. Pediu a três colegas que relatassem em que momento suas consciências foram despertadas para a militância política. Os três relataram momentos de suas vidas em que se confrontaram com problemas sociais e decidiram enfrentá-los. Enquanto ouvia os colegas me dei conta de que eu não saberia como responder a pergunta. Para mim não houve um momento.
Quando pesquisava sobre Rosa Luxemburgo, li um certo comentador (não me lembro agora do nome) que contava ter ela nascido em uma família de quatro irmão. Todos eram belos e encantadores. Rosa não era considerada bela como eles. Ainda por cima, ela teve um problema no quadril, e por um erro de avaliação médica, ainda muito pequena, passou todo um ano com uma perna engessada. Ela estava em fase de crescimento e a perna imobilizada acabou crescendo menos do que a outra. Por consequência, Rosa passou a vida mancando.
Diz o comentador, equivocadamente ou não, que o fato de não ser bela como os irmão e mancar de uma perna teria contribuído para que Rosa desenvolvesse um nível de empatia pelo sofrimento alheio, que para sempre a impulsionaria a lutar contra as injustiças do mundo. Arriscado concordar com o comentador. Ele faz uma suposição. Mas, uma suposição que encontra algum eco em mim, que também tive problemas com uma perna quando criança, jamais me senti uma beldade e ainda não passei a infância numa família unida como foi a dela.
O sofrimento pessoal como impulsionador do desenvolvimento de empatia me parece uma explicação melhor do que condicionamento por formação religiosa. Rosa nunca foi religiosa, embora fosse de família judia. Eu jamais senti minha empatia pelo sofrimento alheio abalada nem sob ataque cerrado de Nietzsche, que fez estremecer meus alicerces cristãos.
Marx, Rosa, Internacional Socialista e Che Guevara são nomes vinculados a uma lembrança remota... Lembro de mim folhando livros de História e pensando "um dia vou saber mais sobre eles". Eram nomes que apareciam em passagens que os professores sempre pulavam, afinal a matéria estava atrasada e era preciso correr... Na verdade, eu sempre estudei em escolas públicas e, na época, estas instituições de ensino já se orientavam por uma política tecnicistas e cientificistas em detrimento do humanismo... Mas, me atraía o incomum que havia nesses personagens históricos. O inconformismo, a desobediência frente à injustiça, a revolta contra o sofrimento humano, a oportunidade de criar o novo contra o que criava e mantinha a velha ordem... Essa luta me parecia a maior das manifestações de dignidade humana.
E me lembro de mim, menina, pensando, "um dia vou sair viajando pela América Latina como fez o Che"... Bem, não fiz. E nem sei em que momento fui deixando esse e outros sonhos de lado. Mas, ao longo da vida, fui sabendo mais sobre os revolucionários, apenas para me dar conta de que eu já tinha alma revolucionária antes de entender o que eles significavam, como haviam vivido, pelo que haviam lutado.
O fato é que ainda muito criança, eu sabia que era filha de uma emprega doméstica, que lutava sozinha para criar duas crianças. E sentia, embora não entendesse, que estávamos ainda mais sozinhas, isoladas, por sermos uma família sem um homem. As mulheres são cruéis com as mulheres e aquele era um tempo de ainda maiores preconceitos do que hoje. Talvez, também isso tenha concorrido para ampliar a minha empatia pelos excluídos do mundo. Sou um deles, então sei como eles se sentem e sei ao lado de quem devo estar.
E a minha preocupação hoje vai muito além de criticar sistemas políticos e econômicos... Não acredito que meramente substituir um sistema por outro seja solução para as dores do mundo. Antes, que essa substituição deve ocorrer em consequência de uma elevação da consciência crítica e autocrítica... Elevação essa que está muito difícil de vislumbrar num mundo tão dominado pelo obscurantismo mercadológico... A Filosofia e a consciência crítica estão soterradas em meio a tanta superficialidade, tanta futilidade! É raro encontrar filósofos realmente comprometidos, que realmente enfrentam o desafio proposto por Nietzsche, por Paulo Freire, pelos visionários que transitaram dignamente por esta Terra. Transvalorar é preciso, "ser mais" é urgente... Mas predomina o "ter" mais, a miséria de valores, de sentidos e de ideais.
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