Meu primeiro contato com a Rede de Educação Cidadã (Recid) aconteceu em 2008. Eu fazia trabalho voluntário em uma associação comunitária, como bibliotecária, e fui convidada a participar de um encontro regional de educadores. Na época, sabia apenas que se tratava de um projeto do governo federal, vinculado ao Fome Zero, o programa de erradicação da fome criada por iniciativa de Frei Betto em 2003, no governo Lula.
A Recid nasceu como um braço do Talher, a entidade responsável pelo cadastramento de famílias em situação de risco alimentar. Recusando o mero assistencialismo, o Talher entendia não ser necessário apenas “dar o peixe, mas ensinar a pescar”. Para tanto, a Recid passou a articular educadores populares espalhados por todo o país. A Pedagogia de Paulo Freire foi, então, tomada como método orientador do trabalho a ser colocado em prática pelos educadores, que já desenvolviam trabalhos visando a melhoria de condições de vida em comunidades carentes.
Originários dos movimentos populares de esquerda, esses educadores são o que diferenciam a Recid de mais um mero projeto de “responsabilidade social” incrustrado no sistema capitalista. São líderes de esquerda e gente do povo, trabalhando pelo auto-esclarecimento e pela conscientização, orientados pela pedagogia freireana e pelos princípios da consciência crítica. E isso, hoje, me parece o que há de mais próximo da ambição da tradição de intelectuais que, ao longo da história, lutaram pelo esclarecimento e pela autonomia dos mais carentes, pela libertação da opressão incutida a eles pelos dominadores e seu sistema de controle e exploração.
Atualmente, a Recid articula mais de 900 entidades em todo o território nacional, com educadores contratados. Todos, necessariamente, desenvolvendo trabalhos de base junto a comunidades. A entidade conta, ainda, com um número de voluntários desconhecido. Níveis hierárquicos foram eliminados tanto quanto possível, as ações são decididas coletivamente, em reuniões colegiadas regionais, macrorregionais e nacionais. Os recursos provém diretamente do Governo Federal.
A entidade convive continuamente com o dilema que lhe é inerente: é uma instância de governamental, porém opositora ao governo; provedora de condições de desenvolvimento do pensamento crítico das massas num ambiente cada vez mais propício à alienação. Ela necessita de organização interna, mas luta contra a burocratização; trabalha para a disseminação do conhecimento, mas rejeita o conhecimento como forma de doutrinação ou de manipulação ideológica; busca a melhoria das condições de vida da população, mas combate a ordem estabelecida, a sociedade predadora erguida sobre valores econômicos que arruínam a alma humana. Em outras palavras, trabalha nos limites do impossível.
Mas esses nem são os principais desafios a serem vencidos. Para um educador popular freireano, o maior desafio é vencer os próprios limites todos os dias. Fazer justiça à mensagem cristã de amor ao próximo, base da pedagogia freireana, num mundo marcado pela competividade, pela busca da manutenção das condições materiais de vida, sem se deixar influenciar pelos valores dominantes (ou pela desvaloração dominante da humanidade). Trata-se de uma tarefa que está a exigir muito mais do que determinação.
De qualquer forma, a Rede de Educação Cidadã é a herança de todos aqueles, que ao longo da história, lutaram e morreram por uma sociedade mais junta, onde os homens encontrem condições para realizar plenamente, e tão livremente quanto possível, suas potencialidades. De Spartakus a Rosa Luxemburgo; de Marx a Paulo Freire.
..