Eu estava numa aula sobre Espinosa. A professora explicava que para este filósofo, o corpo é “memorioso” e as paixões surgem em consequência das lembranças guardadas no corpo. Me perguntei o que eu teria vivido no meu passado, que teria sido registrado na minha lembrança, a ponto de me ligar a alguém que viveu em ambientes tão distintos dos quais eu mesma havia vivido. Não tínhamos nada em comum a não ser temperamentos explosivos e o medo-pânico dos riscos. Dois seres incontroláveis em rota de colisão! Qual lembrança daria força para uma paixão tão indesejada, repudiada desde o primeiro instante, mas independente, voluntariosa e persistente?
Ainda na aula, como num passe de mágica, as imagens que me vieram foram as deste filme... E foi estranho, pois há muitos anos eu não pensava nele. Na época, não pensei muito no assunto. Só um ano mais tarde, chocada com aquela tortura que não terminava, me ocorreu de procurar o filme na Net. Encontrei apenas pedaços que não me explicavam nada, embora me emocionasse rever algo, que eu sabia, havia marcado a minha infância de alguma forma. Não faço ideia de quantos anos eu tinha quando assisti Sooner or Later pela primeira vez pela Rede Globo, numa Sessão da Tarde, nem sabia que o filme tinha esse nome. Na época, não entendia uma palavra de inglês. Apenas guardei o “talvez algum dia” e o nome dos personagens. E só hoje, depois que alguém fez a caridade de juntar os pedaços do filme e eu o encontrei, o revi por inteiro e algo fez sentido como resposta.
Não faz muito tempo, um amigo, meio indignado com as mulheres, me perguntou porque temos uma queda pelos caras “maus”, muitas vezes deixando de lado aqueles que nos tratam bem por algum ser problemático... Pensei e respondi que não gostamos deles, é que a gente sonha com finais felizes, com superação, em transformar o cara “mau” no cara mais legal do mundo... E eu queria o cara legal, procurei o cara legal sob a arrogância, sob a grosseria, contra tudo e contra todos. Eu merecia o cara legal, pois ninguém teria tido mais disposição e paciência do que eu tive... Eu o procurei, procuro ainda e vou procura-lo até o fim da vida... Foi mais fácil desistir de aprender a tocar violão do que desistir de procurar o "Michael"... Afinal, sempre deve existir um cara legal, escondido numa alma cinzenta para ser salvo... É de salvação que se trata, de resgate em meio aos lodaçais em que a vida nos coloca. Se trata de teimar em acreditar que no fim, por pior que seja o caminho, tudo pode acabar em brilhante e resplandecente poesia.
O Michael, do filme, não é o cara “mau”, mas é o desconhecido, a ponte que leva para a outra margem do rio onde nada mais será como antes. E se há trinta e poucos anos eu não sabia, agora sei, que ele era a figura mais atraente do universo. E eu sou igualzinha a Jessie, talvez por opção estética prematura, sei lá... Até quanto ao bolo de chocolate... Curiosa e sentimental em excesso, emotiva, dramática, sou capaz de comer uma assadeira inteira de bolo de chocolate para conter a ansiedade. Engordo, mas a ansiedade fica... E não existem "Micheals" no final do túnel... Não há quem faça o gênero “ok, segura a minha mão e vamos nadar contra a maré, juntos”... Alguém para confiar até debaixo d'água... Há canoas furadas, e como!
Fica o filme, devidamente baixado e guardado... Incrível, mas eu poderia escrever um livro sobre essa historinha ingênua e boba e perfeita, que certamente definiu muito do que eu mesma sou!
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