Não sou nada. Não me curarei nunca na vida. Fui atingido pelo raio do amor e me queimei além de qualquer cura. Ela é uma farpa que não pode ser retirada. Ela é parte de mim, onde quer que eu vá. Ela está em todas as partes.
Gabriel García Márquez está entre os gênios da literatura mundial. E digo isso por conta de seu "Cem Anos de Solidão", obra magistral escrita com grande sensibilidade e domínio técnico, cobrindo gerações de uma mesma família. Ora se atém a sujeitos, ora explode em saudações à totalidade dos ciclos temporais de vida. Grandioso!
Verdade que edições de seu "O Amor nos Tempos da Cólera" há muitos anos passavam por minhas mãos e eu não me animava a lê-las. Na verdade, sempre senti que fugia delas por conta de sinopses que me pareciam desanimadoras. A história de alguém que sofre por amor ao longo de cinquenta anos de ante-mão me soa por demais triste e perturbadora.
Finalmente me aventurei a assistir ao filme. Mas, a história de "O Amor nos Tempos da Cólera" continua me incomodando por demais... Em primeiro lugar porque a relação entre ilusão e realidade é tema filosófico dos mais complexos e angustiantes. Em segundo, porque o entendimento do conceito de "amor" tende a estar apoiado em concepções construídas historicamente, porém aceitas como verdades absolutas.
É claro que o sentimento de devoção por alguém, a força atrativa, a necessidade de estar junto são sentimentos inquestionável. Me incomoda a forma de lidar com estes sentimentos, as soluções tipo "cartas marcadas" que são aplicadas aos obstáculos que surgem no caminho, o tratamento dado às colisões entre idealização e realidade objetiva. Sempre se acaba agindo com base em receitas prontas, baseadas em uma lógica de fundo moral e social dúbia, e que não são respostas seguras para nada. Quantos erros não são cometidos! Quanto se perde por nada!
E é nesse conjunto de perspectivas, principalmente, no meu entender, que está a causa fundante de um sofrimento que, na história de García Márquez, se prolonga por cinquenta anos. Fermina, a mocinha do drama, após prolongado período, em que distante de seu amado sonha com ele e o idealiza, ao reencontrá-lo se choca com a realidade e repele o homem real. Já Florentino, o pobre homem, sozinho, persiste na sua paixão ao longo de décadas. A mocinha se casa com outro e Florentino passa a aguardar que o marido morra naturalmente. Assim, talvez, ele terá uma chance de reconquistar a amada.
E tanta agonia porque no instante decisivo, Fermina não se deu conta de que o sublime idealizado, para deixar de ser imaginação e tornar-se sonho concretizado, exige que se passe pelo teste da adaptação. Entre um homem imaginário e o convívio com o real há diferenças, sem dúvida. Fermina não sabe que o amor se compõe de variáveis a serem tratadas cada uma a seu tempo. E o amor merece que assim seja. A ilusão é componente da paixão, não dissidente. Imaginar, fantasiar, iludir-se, não é ruim. Sem as dimensões subjetivas o amor deixa de ser sentimento para tornar-se reflexo automático, mecânico. O desafio está em procurar, no interior dos próprios sentimentos, a forma mais acertada de tratar os aspectos da subjetividade, vivê-los e transformar o real no melhor que podem vir a ser.
E Fermina se precipita... Para ela, se o amor é ilusão e ilusão é algo depreciativo, algo menor, então, a realidade deve ser racional. As escolha devem ser pensadas e baseada em bom senso, ponderadamente. Assim, racionalmente, ela decide casar-se. Porém, a verdade manifesta-se, fugidia, em momentos fugazes. Em desconfortos físicos, desequilíbrios, angústias, culminando com a desilusão, desta feita desilusão com o real não com o sonho... A gente se desilude com a realidade objetiva e, também, entende que se desilude ao transitar entre realidade e sonho... A diferença é que no primeiro caso a desilusão é consequência da insuficiência do real; no segundo caso, a impressão de desilusão provém da cegueira provocada pelo bloqueio do movimento para a transcendência. Neste, a desilusão é uma falha pessoal.
Adaptar-se me parece um preço pequeno, muito pequeno, para viver objetivamente um sonho de amor... Fermina ignora as possibilidades em aberto, mas Florentino não. O sábio é ele, que instintivamente, percebe que as coisas devem ser tomadas não por aquilo que valem, mas por aquilo que significam... Verdade que significados são adotados por cada um em processos de escolha entre alternativas socialmente construídas. Mas, isso não se aplica necessariamente às essências. E quem entende de essências são os corpos, não a razão. Significados essenciais são instintivos e, neste campo, razão e bom senso podem pouco ou nada. Fermina perde de vista a essência, sublimando-a com paliativos circunstanciais. E assim a vida passa. Enquanto pensa ser Florentino uma sombra, Fermina não percebe que sombra se tornou ela sem ele.
Permeada pelo essencial, e ou por paliativos, a vida acontece... É possível viver ou arrastar-se, chamando de vida bailes de máscaras habituais povoado por sombras cotidianas... O paliativo ainda é vida, o prazer pode ser obtido apesar de ser supérfluo. Mas prazer não é felicidade e é preciso sobreviver de alguma forma... Florentino aprende a separar muito bem o circunstancial e o objetivo da sua vida: a auto-realização no amor pleno, na plenitude transcendente. Não o perde de vista. E seu maior mérito nem é a persistência. Ele persiste, porque não tem escolha. É a coragem de não isolar o sonho como algo inatingível que salva o personagem de ser patético... Ele sucumbe de início, mas supera o masoquismo. Por fim, lança-se no sonho sem medo de o tornar real... O verdadeiro amor, muito além dos conceitos, é conquista dos fortes.
Talvez o sucesso da história de García Márquez se explique pela manutenção da esperança, apesar da tristeza... A esperança é consolo para os apaixonados frustrados e solitário, embora cinquenta anos seja um período de tempo nada encorajador. Ninguém deveria testar a paciência do outro desta forma.
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