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Tradição







E eis que num ano cheio  de acontecimentos inesperados também inesperadamente desisti de fugir do Natal... Não sei bem como aconteceu. De uma hora para outra me peguei comprando árvore, bolas coloridas, pisca-pisca, enfeites... Certa noite, ladeada pela Teresa, me aventurei  até o Center Norte para satisfazer uma necessidade urgente: a compra do livro/biografia do Stieg Larsson, E dei de cara com um presépio em tamanho natural... De alguma forma aquele presépio ligou algo em mim.





Não sou diferente da maior parte das pessoas da minha geração... Creio que seja a maior parte, ou pelo menos uma parte considerável... Penso no Natal como algo pretérito, como vultos de dias felizes passados que não voltam mais. Dias em que mesmo sem me dar conta me sentia protegida por uma família unida, em que os problemas me passavam despercebidos. Dias em que as mulheres se reuniam para preparar a ceia enquanto os homens se encarregavam das bebidas, de trocar bujão de gás, de arrastar os móveis de lugar para acomodar a mesa ampliada.





Na minha casa, árvore e enfeites sempre ficavam a cargo do tio Bernardo. Era ele quem tomava a iniciativa, antes de todos, de lembrar da árvore de natal, de instalar o pisca-pisca, de providenciar o presente das crianças. Veio dele minhas várias bonecas Susi e os carrinhos a pilha do meu irmão. Mas não só. Foi ele, o irmão mais velho da minha mãe, o mais perto que eu tive de um pai. Foi ele quem tomou para si o encargo de ajudar a irmã a criar os filhos e era ele, que quando necessário, comparecia às reuniões de pais e mestres da minha escola. 





Ele estudou pouco. Foi agricultor, pedreiro, metalúrgico. Sabia ler, escrever, contar. Não cansava de dizer para os sobrinhos "estudem para não ser peão como o tio"... Ele se foi há quinze anos. E foi dele, nos seus últimos dias, que ganhei o abraço mais significativo da minha vida. Aquele abraço que falava da imensidão da fragilidade humana numa despedida.





Retomar o ritual de Natal, após tantos anos, significou tomar para mim por breves momentos o papel que foi do tio Bernardo. Significou voltar para casa e relembrar os que se foram, as pessoas, os dias... E neste momento da minha vida, momento em que também a sociedade passa por profundas transformações, pensando o passado no presente, relembrar a minha família significa  relembrar quem sou eu, de onde eu vim, qual o papel que me cabe nesse mundo. 





Sou descendente de negros e índios, de operários, de analfabetos, de pessoas que nunca colocaram os pés numa universidade, de gente que fez e faz parte do exército mundial de mão-de-obra, que teve suas oportunidades de aperfeiçoamento perdidas no cotidiano de lutas pela sobrevivência. E também sou uma anomalia... Escapei desse jogo de cartas marcadas, embora dele tenha feito parte por um bom tempo. Fui salva pela minha curiosidade e teimosia. 





Cultura, acumulei por conta própria, correndo atrás. Sou autodidata muito antes de ser universitária e por isso mesmo tenho postura tão crítica com relação à academia, a sistemas e seus burocratas, à gente falsa e cínica que esconde atrás de aparências para garantir seus privilégios a custa de vidas alheias.  Sei que tudo o que preciso saber está escrito em algum lugar e sei como procurar. E pertenço a uma tradição, sim... A tradição internacional dos não conformados, a tradição dos que sentem o peso do controle dos homens sobre os homens e teimosamente dizem "não"... O que me faz diferente da maioria é a quantidade de  "nãos" que eu digo para manter a minha identidade... Neste ano de acontecimentos tão inesperados, sabendo bem quem sou e quem são os meus, inesperadamente eu encontrei o caminho de volta...Voltei para casa.




oltei para casa.





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