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Incessante








Poucas coisas me são mais insuportáveis do que a rotina. Sou incapaz de compreender pessoas que vivem todos os dias o mesmo dia, apesar de ter vivido minha vida toda cercada por gente do tipo. Há aqueles que se apegam aos mesmos móveis mantidos necessariamente nos mesmos lugares ano após ano; repetem sempre as mesmas frases feitas, como vitrolinha tocando um vinil riscado; se negam a ir adiante, pois o ontem lhes basta como sustento para todo o sempre. Gente assim, com tanta vida quanto os vegetais, sempre precisa de muletas e age como vampiro sorvendo lentamente o sangue alheio. Dependem da vida de outros para manter uma espécie de existência que nem se pode chamar de vida com justiça. E eu, tendo observado tantos exemplos, não poucas vezes me pego na eminência de segui-los automaticamente. Sacudo-me, liberto-me, muitas vezes não sem dificuldades. 





E hoje eu entendo bem a minha “síndrome de Cinderela”, sempre esperando um príncipe encantado que me salve do insuportável, trazendo com ele um mundo diferente e desafiador que eu só vislumbro em sonhos. O que sou, sou por mera teimosia, persistência em não dar ouvidos a quem me puxa para trás. E como ignorar a influência do comodismo alheio dá trabalho! Enfraquece! Preciso de um sol brilhando ao longe, pleno em nós dois, intenso, luz e calor incentivando a independência, um "vai que eu estou aqui para o que der e vier, pois sou porto seguro", um sinal para ser mais pairando no espaço e ajudando a recuperar as energias. Sou movimento e sem ele estou morta.





Me apeguei tanto a imagens ideais porque a realidade muitas vezes me é insuportável. E decifrei meu próprio enigma ao ouvir de um amigo que a gente sempre procura o que nos falta... Se isso é verdade, explica minha busca incessante. Sempre tive demais do mais do mesmo e, por isso mesmo, sempre quis o desconhecido, o impensado, o inusitado, o mais profundo e o mais alto, o mais nobre que transborda em miríades de possibilidades... Sempre procurei um príncipe em forma de sol, luz iluminando o caminho, calor nos dias e noites frios. Sempre estive pronta a ver esse sol onde ele não existia por desejá-lo demais. E levo anos para conseguir aceitar que imaginei em outro o que nele não existe.





Sempre almejei a passagem para o além do umbral... E quero muitas coisas. Até demais. Porém, as quero apenas sendo ser pleno que se reconhece antes de cercar-se do que não lhe é salutar. O ser antes do ter. Alma plena ao rodear-se de matéria dela independe sem risco de escravizar-se. O que mudou é que parei de ver em alguém uma porta. Se tenho excesso de cinza, resolvi que quero cores alegres e vou tê-las por mim mesma. Nem sei mais por qual motivo (além de delírio rebelde puro e simples) algum dia considerei que precisava de um príncipe-sol para me presentear com luzes, tintas e cores. Vou buscá-las eu mesma e cultivar o meu jardim. 





Transformar paredes em arco-íris implica ignorar ervas daninhas e seus zumbidos incessantes. Algo que não se faz sem arranhões e fraturas. Elas virão, certamente. Talvez agora menos em mim, pois se há algo precioso, que me ensinaram recentemente e que eu aprendi muito bem, é que poucas coisas que parecem indispensáveis para a manutenção da vida realmente o são. Discernimento: eu não preciso de um sol que seja menos do que o próprio astro rei.

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