Hoje foi dia da final do Mundial de Clube da Fifa. E eu acordei às oito da manhã embalada pelo “timão eO, timão, eO” que vinha da rua e atravessava as paredes do meu quarto. Nos últimos anos a torcida do timão tornou-se cada vez mais barulhenta. Na última copa do mundo me lembro de ter comparado os níveis de barulhos nos jogos da seleção brasileira com o estardalhaço da torcida em dias de jogos do Corinthians. A seleção brasileira já perdia. E de longe!
Acompanho à distância essa movimentação em torno do futebol, como se ela acontecesse em um mundo paralelo do qual vez ou outra eu ouço algum eco. E mais de longe ainda acompanho olimpíada e pan-americanos. Mas, observo com altas doses de escárnio as ações de mídia em torno de eventos esportivos. Então, não gosto de esportes? Não é o caso. Gosto de várias modalidades. Mas, não gosto de nada que exalta uma única perspectiva e ignora outras que são nocivas, coisa que a mídia (e não necessariamente o esporte) é expert em fazer e o faz à exaustão.
As origens do futebol se perdem no tempo. Creio mesmo que ela está vinculada ao próprio desenvolvimento da motricidade humana, ao simples ato de esticar uma perna para tocar um objeto. Como jogo organizado, com regras, há indício de sua prática no século II a.C., na China. Mas não só. Em tempos remotos também surgiu no Mediterrâneo, no Egito, na Grécia, em Roma, e mesmo no Alasca. Ai vai uma longa história. Já a origem dos jogos de status olímpico remetem a mitos e lendas. Na antiguidade grega, em Olímpia, representantes das diversas cidades-estados se reuniam periodicamente para competir em honra aos deuses. Em síntese, a história dos jogos faz pensar que eles são atividades inerentes ao desenvolvimento humano e à sociabilização.
No século XVIII, a revolução industrial e consequente nascimento da indústria cultural fez nascer o esporte espetáculo, controlado por empresas com direito de arena, direito de passe, direito de imagem. Como a força de trabalho é vendida para os donos do capital, assim ocorreu com as capacidades físicas dos atletas e com o entretenimento que suas práticas proporcionam. Surgia o atleta-trabalhador, vinculado à vontade do empregador, e o esporte-negócio que move altos volumes financeiros à medida que conquista o interesse do público e, consequentemente, torna-se ambiente para exposição de marcas, angariando altos volumes financeiros, num círculo contínuo.
No Brasil, o futebol no formato institucional chegou em fins do século XIX, início do XX. Filhos da elite, após temporada na Europa, retornaram trazendo a “novidade”. Daí surgiram os primeiros clubes e os primeiros jogadores profissionais. Ao longo dos anos, de passatempo de elite, o futebol se tornou ópio do povo. Ou seja, manteve-se útil às elites. Já as outras modalidades nunca foram tão populares quanto o futebol, mas também tem seus praticantes e público interessado. E se tem público interessado, também é patrocinável e vendível.
Por cinco anos, entre 1995 e 2000 trabalhei na Federação Paulista de Futebol. Passava meus dias analisando e registrando contratos de atletas profissionais. Algo em torno de dois/três mil contratos passavam pelas minhas mãos anualmente. E posso dizer, sem medo de errar, que cerca de setenta por cento desses atletas eram registrado com salário mínimo. Jovens que dedicavam suas vidas ao sonho de glória, fama e fortuna, só atingido por pouquíssimos.
Claro que a indústria cultural alia marcas aos possíveis vencedores. Mas, quantos “fracassados” é necessário para fazer um “vencedor”? Em 2000, a CPI CBF/Nike seguia a todo vapor. Aldo Rabelo, então relator, publicou pela Casa Amarela o seu “CBF/Nike, as investigações da CPI do futebol da câmera dos deputados desvenda o lado oculto dos grandes negócios da cartolagem e passam a limpo o futebol brasileiro”. As mazelas expostas ao longo de mais de duzentas e cinquenta páginas podem ser sintetizadas da seguinte forma: o espetáculo estimula o sonho de glória, fama e fortuna em jovens que passam a ser explorados, das mais variados formas, por empresários e empresas. Detalhes são consequentes.
O dois/três mil contratos de atletas profissionais que eu registrava por ano não eram nada diante das cerca de 30.000 inscrições de atletas para discuta de campeonatos de várzea, dos cerca de 10.000 atletas amadores de clubes profissionais. E o vínculo que eu faço é que existem outras formas possíveis da gente fazer o que gosta longe da cegueira e dos vícios que nos são impingidos pelo sistema, pela mídia e seus experts.
Sou reticente em acreditar que as coisas algum dia vão mudar a ponto de não haver mais explorados e exploradores. Tem gente demais, com recursos demais trabalhando para perpetuar a estrutura que está aí, gente usando as emoções humanas da forma mais repugnante. É um problema estrutural e um problema humano... Mas é que sou como Neo, o personagem de Matrix, o filme. Tomei a pílula vermelha e não vai haver mídia que me faça ignorar que ela sustenta esse mundo que colocaram diante dos olhos de homens e mulheres para nos impedir de ver a verdade... Observo. E de quanto mais longe melhor.
Foto: Crianças jogando futebol na Aldeia Aiha - Etnia Kalapalo - Parque Indígena do Xingu Por Delfim Martins em http://www.lurvely.com/photo/4071980724/Crianas_jogando_futebol_na_Adeia_Aiha__Etnia__Kalapalo