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Lição dos Antigos


Texto: Helena Novais

Nos meus tempos de menina sempre ouvia dos meus familiares que criança deve respeitar os mais velhos. E ontem, conversando com um amigo nem tão mais velho do que eu, me vieram sínteses importantes... Ele, também filósofo, professor e coordenador de curso em uma escola importante, se referindo a seu histórico antigo de participação em lutas sociais, disse: "a gente começa a se envolver [com as lutas] e a certa altura começa a ver que as coisas não são como deveriam ser, que há muitas coisas erradas, mas a gente começa a gostar de estar ali...". E eu o entendi perfeitamente. Ele sintetizou para mim, em poucos segundos e em poucas palavras, um drama que eu sinto, mas que não conseguia verbalizar.

A gente se apega às situações, à rotina, às pessoas de quem aprende a gostar... E quem não gosta de encontrar pessoas de lugares tão diversos e com elas viver a aventura e a ilusão (ou não) de estar transformando o mundo de alguma forma? Quem não gosta das mínimas mordomias (justas, até) de viajar pelos lugares mais diversos com todas as despesas pagas, salário fixo e mais ajuda de custos? Quem não gosta da "liberdade" de organizar o próprio tempo como lhe aprouver? É uma forma de viver que destaca, retira um indivíduo da massa de robôs sem outra perspectiva que não seja viver o dia-a-dia maquinalmente, e o coloca numa posição atípica, a qual ele não viveria de outra forma... Atípico, sim! E a gente começa a gostar, apesar das coisas erradas que campeiam.

Cheguei em casa e vi pela TV as imagens que já circulavam pela Internet: a Presidenta Dilma falando na ONU. E me chamou a atenção não a Dilma, mas as pessoas que estavam na assembléia, sentadas, aplaudindo-a. Claro que cada pessoa tem um histórico de vida que as fez estar ali naquele momento. Possivelmente, um número considerável daquelas pessoas não têm só um histórico de vida individual, mas também familiar... De qualquer forma, são pessoas que em algum momento "começaram a gostar" de flertar com o "poder"... Também elas têm um estilo de vida atípico, que as distingue da grande massa da humanidade, com seu dia-a-dia formatado.

"Coisas erradas" há... em TODOS os lugares! Estou considerando como "erro" o auto-engano, o mentir para si mesmo quanto aos reais objetivo das próprias escolhas... Quantas vezes a gente é induzido a pequenas práticas que são incoerentes com nosso projeto maior de vida e que vão corroendo os nossos alicerces a partir de dentro, a partir do que nos é mais íntimo? Ao nos submetermos, agimos para estabelecer o bem-estar comum ou para manter as condições que garantam o mero exercício do próprio ego até às custas do sacrifício (conscientemente ou não) desse bem-estar comum? Até que ponto, em meio a jogos de interesses e conchavos é possível manter a própria identidade e os objetivos iniciais? Viver não é jogar pôquer ou xadrez.

E isso tudo me lembra uma declaração feita por alguém, anos atrás... Disse que não se conformava em viver como formiguinha e que um dia transformaria o mundo... Essa pessoa está hoje numa posição curiosa, em que não lhe é difícil, ao aprimorar seu domínio sobre alguém em específico, também exercer seu domínio sobre as massas... Bem atípico! E eu observo, de camarote, esse caso atípico, como boa observadora do humano, demasiado humano, que sou... E a questão que me vem é antiga... O que vale ganhar o mundo inteiro e perder a própria alma?Não imagino nada pior do que olhar para dentro de si e não se reconhecer, encontrar apenas um espaço árido, ermo, que progride incessantemente para coincidir com o fim comum a tudo o que vive... Mentira que a solidão é estar sozinho, solidão é estar consigo... Antes assim do que não ter nem a si. A nossa consciência é a única coisa que verdadeiramente é nossa, em cada segundo da nossa existência, e que por isso precisa ser muito, mas muito bem ouvida e preservada.

Outro dia, ouvi de uma companheira "Helena, você tem o perfil dos primeiros educadores populares, aqueles que defendiam ideais e iam pra cima dos contrários, mas todos eles chegaram em um momento que não conseguiram mais." Foi o que aconteceu com o meu amigo, que hoje é professor de Filosofia e coordenador de escola.

A gente seria muito mais sábio se não desprezasse a herança histórica que nossos antepassados nos deixaram... Há finais que são erros anunciados tão ancestralmente! São os indivíduos, de fora do rebanho (e existem vários níveis de rebanho, rebanho dentro de rebanho), que realmente impulsionam a transformação do mundo em um trabalho, sim, de formiguinha, de carregar pedras, lentamente.... A transformação é resultado conjunto do trabalho de todas as formiguinhas, algumas mais livres e autárquicas do que outras conseguem ser... E a gente nunca deve esquecer a lição do Nietzsche: a tendência é que os fracos destruam os fortes... Até porque os fortes sempre colaboram tropeçando nas próprias pernas, nos próprios auto-enganos, no próprio ego... Pelo meu lado, estou a ponto de trocar a "ONU" pelo "Jardim de Epicuro".

Publicação original: http://claro-escuro.blogspot.com.br/2012/09/licao-dos-antigos.html

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