Texto: Helena Novais
Em 04.07.2013
A minha alma inquieta está profundamente abalada pela turbulência que sacode as sociedades de todo o mundo. Não posso me livrar da impressão de estarmos, todos, numa encruzilhada, num momento derradeiro que decidirá a sobrevivência da própria humanidade. Mas, de alguma forma, aos poucos, também estou me adaptando ao papel que cabe aos intelectuais: estudar, observar serenamente, experienciar, analisar, diagnosticar, escrever, discutir, fazer o possível para esclarecer expondo pontos de vista.
Como resultado dos meus estudos, observações e experiências, estou acreditando, por exemplo, que Julian Assange não exagera quando diz que a Internet é uma ameaça à humanidade. Esta entendida como homens e mulheres permeados por subjetividade própria, por valores, sentimentos e tudo o mais que define almas de homens e mulheres (olha Foucault aí!).
Nas minhas divagações estou comparando o lado negro das tecnologias da informação à indústria de cigarros... Esta lançou no mercado um produto e um comportamento correspondente sugerido pela propaganda. Como sempre, destaca-se apenas o lado positivo. Fumar tornou-se moda, sinal de glamour. Mas o lado negativo veio a público: o vício, as doenças... As tecnologias da informação mudaram o mundo. Transformaram o jeito de fazer, de ser, de viver. Também se tornou vício pra muita gente e, portanto, doença [a USP, não é de hoje, tem grupo de estudo e tratamento para viciados em computador e informação]. E daí a gente se dá conta de que é monitorado e controlado, todas as horas do dia, sete dias por semana, por meio dessas coisas que estão a definir nosso modo de viver e de ser, as tecnologias da informação: cartões bancários, celulares e telefones fixos, computadores e seus sistemas de software. Assustador que se eu comprar um sorvete na esquina e pagar com cartão se pode saber instantaneamente exatamente onde estou e fazendo o quê!
Também tenho pensando muito num texto chamado "Educação Após Auchwitz", de Theodore Adorno. Ele, filósofo que viveu os horrores do nazismo e da Segunda Guerra Mundial, chama a atenção para as responsabilidades dos educadores frente à necessidade de esclarecimento das massas. Não se deve esquecer Auchwitz. É sabido o que acontece quando toda uma nação é cegada por líderes, com pretensões à donos do mundo; o que acontece quando um governo ignora todas as regras de boa convivência planetária com ambição de a tudo e todos dominar e achando isso normal; quando discursos são usados como instrumento para incutir mentiras e ilusões. Temos exemplos de épocas em que não se dispunha de um décimo do poderio tecnológico disponível hoje.
Outro dia, num encontro de filósofos que estudam cinema, assisti à exposição de um projeto de documentário sobre educação. O expositor havia conversado com um conhecido cientistas, que desenvolve pesquisas de ponta na área de neurologia e educação. Em resposta a uma pergunta minha, o expositor contou que tal cientista teria lhe dito que "se fosse se preocupar com as possíveis más consequências de suas descobertas, então não faria mais nada". Possibilidades de más consequências não são problema dele... Bem, eu o estou observando há anos e já imaginava que pensasse assim... Me lembrei das minhas aulas de filosofia da ciência em que se critica duramente a visão pragmática dos cientistas e seu descompromisso ético e crítico; me lembrei do Projeto Manhattan, cujos cientistas choraram após o leite derramado com a explosão da bomba atômica. Só então, questionaram-se sobre as responsabilidades da ciência. Tarde demais! Claro que a ciência tem objetivos a cumprir, mas quais as condições, possibilidades e limites toleráveis de suas práticas?
Jacob Appelbaum, pesquisador de segurança em Internet e colaborador do Wikileaks, conta no livro recentemente publicado por Assange, "Cypherpunks - Liberdade e o Futuro da Internet", sua experiência com um grupo de estudantes interessados em softwares e games. Numa conferência, acontecida em uma universidade estadunidense, notou a forma como estudantes reagiam aos jogos e o baixo senso crítico; notou o interesse militar nesses estudantes. Daí para se tornarem pilotos de Apaches não fica muito longe... Há toda uma geração de experts em tecnologia se formando e ambicionando conquistar um emprego como o que Edward Snowden tinha até muito pouco tempo atrás. Quantos deles, em momentos cruciais, ousarão se arriscar a seguir os passos de Bradley Manning, torturado e enfrentando uma corte marcial; de Aaron Swartz, que suicidou-se sabe-se lá em que circunstâncias; de Edward Snowden, que para se tornar caçado como Bin Laden não está faltando muito; do próprio Jacob Appelbaum, barrado e intimidado em aeroportos? Talvez não mais haverão delatores...
E a situação parece ainda pior ao se notar as interpretações viciadas feitas por alguns líderes de governo. Evo Morales, ainda no registro ideológico comunista, com todo meu respeito, se mostra muito fora da pista ao dizer que a Europa teve a intenção de provocar a América Latina ao lhe fechar o espaço aéreo. Não, a Europa quer mais é que América Latina, África e Ásia permaneçam serenas e placidamente monitoradas e controladas, pois a Europa também se beneficia disso. Se Morales tivesse lido o Prefácio escrito por Julian Assange, especialmente para a América Latina, como introdução de "Cypherpunks", muito antes de Edward Snowden aparecer em cena e confirmar suas análises, não teria deixado passar a oportunidade de se aproximar do delator estadunidense em Moscou e ouvir qualquer coisa que ele tivesse a dizer. Qual a situação da América Latina frente aos sistemas de vigilância?
E esse circo de horrores internacional está envolto por crises locais... No Brasil, bancada evangélica com ambições republicanas, corrupção política, manifestações sem rumo... É muita crise para se pensar e resolver ao mesmo tempo! A dialética do esclarecimento ou dará um salto muito grande, ou iremos todos para o abismo com ela... Por mais que se tenha fé na capacidade humana de reação, o cenário parece tão ameaçador como nas piores épocas. Durma-se com um barulho desse! Continuo lendo "Educação Após Auchwitz".
Publicação original: http://claro-escuro.blogspot.com.br/2013/07/turbulencia.html
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